Sofia A. Carvalho é doutoranda em Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa e bolseira da FCT, com um projecto sobre Teixeira de Pascoaes. Em 2019, publicou, em colaboração com o músico electroacústico João Castro Pinto, Hiante, um livre-affiche com a chancela da editora helvética Grimaces Éditions.
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BOCCA DEL LUPO
Tão cedo não é possível um corpo, uma cidade, um infinito mutilado, um pouco mais baixo, a carne. Tudo isto já sabes, se preferes a simplicidade e a solidão, sem acidular as mãos. E se a mão transparente e lúcida, cada vez mais lúcida, a mesma que colhe uma flor e castiga o verso, a que excede o corpo a leste, aumentasse o abismo a metade, disputando-o? Talvez sem saída o faro das coisas e o cair da manhã. A luz assim a passar, com o corpo desatento não atormenta e é como se tivesse acontecido. NOCTURNO ÀS AVESSAS e as paredes do quarto no mesmo sítio tão perto como o corpo do poema e o frio a romper as escalas do sono que demoram por fiéis a um deus e as mãos que trazem consigo mais do que o gesto o seu carácter triste e o rosto em fuga enquanto o verbo lucífugo fica cheio de gente e o canto se transfigura: afinal tudo é estranho e sem traço à excepção do espaço detalhado que ocupa a tua voz conforme deixas cair os olhos sem perceber que assim desce a noite caliginosa também. E dizes ser rio o que encontro quando a luz desaparece simplesmente por não ter começo e eu digo ser rio o que deixo para trás linfa abundante que não se explica e avoluma, aí. Mas é vasto o curso da água – embora o engula e chame meu – não detém a boca hiante sede animal que atravessa as costas e a posição surda das letras ao grafar o mundo e os corpos mas entre mundo e corpos há vértices novos que compõem a respiração e alinham os dedos às coisas como línguas acesas que ninguém abraça lado a lado e nisso anoitece anoitece sempre que o espírito arde. BESOURO DE TRAZER POR CASA Porque não sou besouro a trazer no estojo a asa deito fora as membranas num gesto lépido de guardar o esqueleto rígido. Ficam as antenas espécie mandibular de bico conhecido também por rosto à distância certa entre a cabeça e o abdómen, ampliando os graus: soube da estrutura receptora variar mediante o tipo sanguíneo diz-me porque ao sistema respiratório, de índole lisa e circular, convém provocar o nervoso, que lhe é par, sem estarem fundidos. Não lhe dei resposta e sem desprezar o argumento troquei o bicho pelo poema hábil a mostrar a luz polarizada. |