Raquel Nobre Guerra (Lisboa), licenciada e mestre em Filosofia, frequentou o doutoramento na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com uma bolsa de investigação da FCT. Não concluiu a tese. Publicou Groto Sato (Mariposa Azual, 2012), distinguido com os prémios Pen Club Português e Prémios Novos – Culturgest / CGD; SMS de Amor e Ódio (Residências no Largo, 2013); Saudação a Álvaro de Campos (Palavras por Dentro, 2014); Senhor Roubado (Douda Correria, 2016), com edição também na Selo Demônio Negro, São Paulo, 2017 e Hochroth, Berlim, 2019. Em 2017 foi-lhe atribuída uma bolsa de criação literária pela DGLAB. Em 2019, sob coordenação e tradução de Jerónimo Pizarro, é publicada a antologia bilingue Una Coca-Cola Contigo (Puro Pássaro, Bogotá). Prepara o próximo livro.
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O FIM DO MUNDO COMEÇA SEMPRE NO CAFÉ DO BAIRRO
o vietnamita eleva uma maçã acima da cabeça como se me atravessasse nesse seu gesto corso gente que está viva, diria, pasto para as sensações e isto não quer dizer nada senão que sigo a forma dos objectos mortos para que as coisas passem que me esforço por um certo sossego. Ainda sou essa criança predadora que empurra a noite para o lado com os dentes acordo no lado mais duro da terra faço contas ao corpo antes de ser bicho penso esta obsessão não é verdade estou morta sou infinita e a manhã despenca como uma grua agora vou ao café todos os dias para que o mundo que me percorre entre pela ordem exacta dos punhos respiro com as raparigas da cidade digo, como é quente e pesado este fato preto que vai doendo menos abrir os olhos debaixo de água que se canta melhor na Praça das Flores de frente como estás para mim que eu só queria existir um pouco na definitiva passagem do fogo e suster a passo veloz os estragos a força de um corpo resumido ao vento agora escrevo diários íntimos para cumprir o instinto canalha de quem rouba para ser apanhado de quem mata pela beleza de um corpo por onde se enfiou um dos braços até não saber a que altura se pôs a noite depois nada, a minha vida é só a minha vida um olhar bovino treinado para devolver ao mundo o mínimo insulto sem me mexer um milímetro e eu já não sei a que altura se pôs a noite nem da fraqueza do sol que cai de borco (o café ilumina-se de todos os anjos filhos da puta) daqui a pouco sairei de casa estou certa que daqui sairá o poema mais triste. APRENDI A TRANQUILIDADE DE PASSAR SOBRE OS DIAS com o domínio de um coração baixo de me perturbar menos a posição astrológica de certas palavras no coração do verso houve vezes em que me embaracei na musa e tanto quis largar-me à doçura desse humor que me cheguei de cara toda à carcaça julgando que o bife na mesa fosse meu mas a natureza morta da metáfora não me deu talho para o poema sei que qualquer aragem me atravessará o corpo e que a mentira da manhã vai folgando entre nós como um sol mobilizado para a morte sei porque me chego para a frente com força que o poeta transporta um saco de luz com um coração doente que canta mas não há verdade nesse coração que não termine com duas senhoras de negro que não me falhe a pontaria na hora de traçar uma obra futura para nutrimento do espírito — essa besta furiosa que nunca chega a ser livre por muito que fulja e se agite no homem com mais homens dentro. Que isso seja mais que cair na tentação de durar por escrito (minto, porque cedo ao poder das palavras o que trago no saco são coisas remendadas que vou deixando cair) se ao menos tivesse dois ou três dentes de ouro [1] e na lei que me confere vencida a ética fizesse, como tu, felizes tantas bocas mas aprofundei-me na ocupação da violência um arzinho de filosofia para empernar meninos um pai matemático e obsessivo como um poço sombrio um príncipe melancólico com abalos de amor por mulheres mais tristes que uma mulher a correr urgências psiquiátricas para arranjar namoradinho reconheço, no meio disto, a cantiga do bandido. Se ao menos aprendesse a bravura dos recrutas: Vá — pago um copo / a quem disser que me ama! [2] Mas não, garanto e mal este pouco verso para que o leitor avance dobrado sob mim. Corrijam-me se estiver errada mas a razão comovida de tudo podia começar por aqui agradecer aos destroços, abrir lume destinar-lhe estas últimas sete palavras ser convicto enfim mesmo sem saber como. [1] Herberto Helder [2] José Miguel Silva GOSTO DE ACHAR QUE SEMPRE FUI UMA BOA SOLITÁRIA quando morrer colocada sob a luz mais favorável dirão que me movi com a ira de um rei trocista farão romarias ao Senhor Roubado para esmolar o pouco que não tenha sido apontado amigos que enterraram corpos amigos um só amor capaz de morrer de tão antigo um burro tombado de vícios e vaidades os meus duzentos e seis ossos farão a desculpa para doutoramentos sobre o Estádio, esse tabique, que impedia o Letes de engolir o rasto dos dias ao fim ao cabo não terá corrido mal a tão alardeada beleza já nos estava prometida sabes, tenho pouco para dizer afinal apreciar sobretudo não ter para onde ir fazer do amor o passageiro frequente cobrir cada vez mais a cabeça de camélias. Merecerá mais a literatura que a minha vida? Fiz a tropa toda no grande bluff da noite literária contribuí para a mania da minha geração sofro o meu próprio termo de orfandade e aceito que a medida daquilo a que chamam realidade seja um aparador de bibelôts com as pernas bambas que sem querer um animal faz desandar. Já pouco escrevo que convenha à javardice diária escrevo a bebedeira das palavras escolhidas porque nunca ninguém escreveu para se elevar escreve-se para dar forma ao medo e abrandar-lhe o peso. Acreditem sou supersticiosa penhorem-me a vida tenho uma perninha no bem outra no mal e mijo no meio é honesto pensar assim. Quando me levarem levem-me inteira mas antes deixem-me surfar a ressaca da última onda. SORRIO AOS MORTOS E ENTERRO OS VIVOS como um objecto escuro por que rodaram mãos e jeitos de luz vivo como se não estivesse aqui roupa leve como na vida e vou da primeira à última batida na respiração de um pulmão doído lê assim podia arder a uma pouca distância de ti nessa praceta que é um poema teu e as coisas voltariam a mim, meras, como o ser transportada pelos dias mas cairei por aqui meu amor porta no trinco e nada nas mãos há muito que é tudo o que resta. |
KKA
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para Luís Miguel Oliveira
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terá sido o dia em que acordas sem saber que estás prestes a apaixonar-te e então começas por ordenar a cabeleira lavar o rosto que escorre para o ralo conjugar o corpo com a mais perfeita ideia de corpo não importa o que vestes é outono terás exigido a conclusão da sua existência quebrado a cerimónia com o mundo andado em meio dos homens a farejar roupa interior como campos de flores pensado a minha melancolia a minha revolta a mão que tudo aperta a mão por onde tudo escorre ah se eu pudesse matar! terá sido o dia em que deste um passo atrás nesse instante as mercearias à mercê de um sabor tardio a mobília corrida de transigência trinta e poucos anos a arrastar coisas de um lado para o outro — não é isso que faz o escritor? — para chamar ao presente um filé de verso a carne de um sol arrefecido nas mãos de outro sol como então este terá sido o dia em que choraste não um choro qualquer aquele que maltrata a metade pública do rosto e ninguém te beijou terá sido o dia em que ficaste a sós com o silêncio só dos primeiros minutos da tua vida terá sido o dia, obrigada mestres, o resto não pertence aqui, em que ficaste de fora e agradeceste por esse download cósmico.
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