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VOLUME 2


PATRÍCIA LAVELLE
Patrícia Lavelle nasceu no Rio de Janeiro, é professora do Departamento de Letras da PUC-Rio, associada ao Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. Doutora em filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde morou entre 1999 e 2014, tem livros de ensaios publicados na França e no Brasil. Suas pesquisas problematizam as relações entre criação literária e reflexão filosófica. Como poeta, publicou Migalhas metacríticas (7Letras, coleção megamíni, 2017) e Bye bye Babel (7Letras, 2018). Bye bye Babel obteve a primeira menção honrosa do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, edição de 2016.
PARA TRADUZIR BABEL
« Manque la suprême »
 
En vers traduire à l’envers :
traduire d’aucun original
 
le presque pas d’une pensée
qui perce
et devient
voix
Todo mundo conhece a velha história bíblica de Babel, mas gostaria de recontá-la ainda. Nela, uma comunidade teria tentado erigir uma cidade e uma torre capaz de tocar o céu e assim fazer para si mesma um nome que aboliria toda alteridade, inclusive a divina. Tal projeto, fundado na ilusão de uma fala única e unificadora, é a imagem do desejo de uma linguagem suprema, de uma pura linguagem, perfeitamente transparente, confrontando-se à efetiva pluralidade linguística e à relativa opacidade no interior de cada língua. Babel, que figura o desejo da língua perfeita, imediata e única é portanto também a imagem da confusão linguística que resulta de seu fracasso inevitável.
Que fique claro: Babel não é um conceito do qual eu poderia dar uma definição, também não é exatamente uma metáfora. Trata-se de um motivo ou um tema que atravessa um conjunto de poemas, e talvez seja também uma alegoria: designa uma coisa e seu contrário, e portanto ainda uma outra coisa, e outra, e outra. Por isso não posso definir Babel – como traduzi-la então, senão contando ainda? E recontando não apenas uma, mas duas histórias.
 
Arca de Babel
 
Era uma vez duas histórias:
a cidade em construção
era este barco à deriva.
 
Nele, as línguas, enroscadas,
pares híbridos e férteis,
cresciam e multiplicavam-se. 
 
Um abarcar, muitas arcas:
esta cidade à deriva
é balbúrdia e tradução.
 
Traduzir Babel é também despedir-se. De uma longa despedida foi surgindo aos poucos, a partir de 2014, Bye bye Babel, tardio primeiro livro de poemas, que publiquei em 2018. Essa despedida também tem uma história na qual a experiência de traduzir e a reflexão sobre a tradução nascem de um retorno progressivo à língua materna que antecedeu minha volta ao Brasil.  
Há pouco mais de dez anos, quando morava em Paris, o convite para participar de um número de revista me fez perceber, com espanto, que eu não tinha escrito nenhum texto em português durante os dez anos anteriores. E isso embora tivesse publicado um ensaio de mais de trezentas páginas sobre Benjamin e Kant – trabalho que correspondia à minha tese de doutorado em filosofia, defendida dois anos antes – e continuasse escrevendo artigos regularmente. A partir daí, comecei a me auto-traduzir, reescrevendo em português textos produzidos inicialmente em francês. Isso não foi muito fácil no início. Faltavam palavras, e sobretudo formas de ligação, articulações sintáticas. No entanto, não sou bilíngue desde a infância, o francês é uma língua que aprendi na juventude e só se tornou a minha língua de escrita quando uma outra língua, ainda mais estrangeira e tardia, veio instalar essa babel: o alemão, que precisei aprender em francês.
 
Palavra estrangeira
 
Entre palavras e coisas,
há sempre alguma distância:
na palavra, a coisa é outra
na coisa, a palavra nem é.
Mas essa coisa sonora,
que a palavra é também,
é uma forma de armadilha
pra pegar uma outra coisa.
 
Presa em palavra estrangeira,
uma coisa é ainda mais outra
menos diversa dela mesma
que do meu próprio silêncio.
 
Mas a palavra estrangeira
que tardiamente apreendi
em prévia palavra estrangeira
torna-se coisa ainda mais diversa
prendendo-me assim à primeira.
 
Coisa apreendida no tempo,
toda palavra é armadilha
onde eu, ela ou isto
(a coisa pensante = X)
capturada, captura-se:
toda palavra é estrangeira.
 
Entre as línguas europeias, o francês é a única átona. Isto significa que cada palavra quase não tem marcas acentuais. Palavras e frases ganham alguma tonicidade apenas com as pausas, num movimento ligeiramente ascendente logo antes da parada. Nisso, a língua francesa é mais distante do português do que o alemão, que tem sílabas marcadamente tônicas. Mas foi na confrontação com o ritmo desta outra língua estrangeira, aprendida mais tarde, que incorporei a monotonia do francês: sua ausência de tonicidade alterou e ainda altera meus gestos, postura corporal, tom de voz numa experiência que outras pessoas também relatam a propósito desta e de outras línguas adquiridas.
 
Traduzida
 
A língua do tradutor invade a minha boca
e lúbrica aliso a plástica muscular
de suas vogais macias
e essa reta ligeiramente ascendente
de cada frase sua
penetra
o elástico rítmico das minhas sílabas
em duplo silêncio
gozo
o eco nessa outra voz
langueur monotone
dentro
 
Acho que o trabalho com o material fonético do português e seus arquivos rítmicos na escrita poética tem relação com o estranhamento da língua materna nessas primeiras auto-traduções, nessa espécie de fricção que reapareceu também nas experiências de tradução do francês em português, que realizei em seguida. Escrevi alguns poemas na infância e sempre fui leitora de poesia, mas a escrita poética só surgiu como projeto nesse estranhamento da língua, e sem dúvida da nostalgia de seu ritmo. E nisso não reivindico nenhuma originalidade – muitas outras e outros poetas relatam experiências semelhantes. Parece que há um parentesco profundo entre a experiência da pluralidade linguística e o fazer poético.
A produção poética trouxe uma intimidade com a materialidade do português, com as tonalidades afetivas de seus acervos rítmicos que eu até então desconhecia e os tradutores contumazes conhecem bem, porque a experimentam fisicamente. Essa relação mais íntima e corpórea com a língua me levou ao estudo dos arquivos métricos, das formas tradicionais de versificação, nas quais se sedimentam afetos. Com a escrita poética, fui desenvolvendo uma consciência sensível e sensual do material linguístico, numa experiência de erotização da linguagem que se aparenta ao Eros da tradução.
“Eros e logos” é o título da série de poemas que está na origem de Bye bye Babel. Traduzo “logos” como propõe Hamann, o contemporâneo e conterrâneo de Kant a que Benjamin se refere de modo tão significativo, e até mesmo quando não evoca o seu nome: “Razão é língua: logos”. O pensamento não é uma matéria rarefeita incorpórea. Ele vive imediatamente na linguagem, mas dela em princípio se distingue, como indica Benjamin em seu ensaio “Sobre a linguagem humana e sobre a linguagem em geral”, pois também comunicamos conteúdos de pensamento através de uma língua, compreendida assim apenas como meio de comunicação. Assim, com a palavra “linguagem”, abstração que empregamos comumente para falar da pluralidade efetiva das línguas na sua materialidade discursiva em constante movimento, indicamos também a possibilidade de passagem entre elas, através da tradução.

O Tradutor
 
O corpo contorce
um gesto sem
som
esboça ritmos
em movimento arrítmico
dos lábios.
 
Entre duas tramas
(fonemas
palavras
sintagmas
sintaxes
sentidos
entre parêntesis)
 
um hiato:
cesura a-semântica
intervalo
 
 
 
 
 
e salto
Diante dos silêncios internos ao sentido, que apreendemos apenas na palavra, diante da cesura a-semântica que salta de uma língua a outra, toda palavra é estrangeira. Penso que o elemento erótico se inscreve nesta brecha que se abre entre os sistemas linguísticos, permitindo a circulação entre eles, assim como entre a linguagem e o pensamento. Esse Eros vem daquilo que, na pele polimorfa e sensível do logos, abre-se à tradução inter- ou intra-linguística e implica o corpo através do ritmo e do gestual de elocução. É fissura: abertura ao outro, diálogo.
 
Diálogo
 
Senti teu olhar endurecer
entre as minhas
palavras:
intumescência imediata
naquela fenda
obscura
entre o corpo e o discurso.
 
Paul Ricoeur, num pequeno livro intitulado “Sobre a tradução”, que traduzi em português e foi publicado em 2011 pela Editora UFMG, pensa a passagem que se opera na tradução como “elaboração de correspondências sem adequação”, de “equivalências sem identidade”. Deixando de lado uma certa filosofia da tradução que oscila entre a tese de sua impossibilidade teórica e a constatação de sua prática efetiva, ele a concebe como “construção de comparáveis”.
Para Ricoeur, a tradução aparece como objeto de um desejo que vai além da necessidade de comunicação interlinguística em sua utilidade prática. Citando uma tradição que vai de Lutero à Benjamin, passando pelo romantismo, ele afirma que esse desejo não diz respeito apenas ao sonho babélico de abolir a diferença entre as línguas, seja pela via iluminista da eliminação de todas as intraduzibilidades no âmbito de uma racionalidade universal, seja pela espera messiânica de uma pura linguagem, radicalmente expressiva. Segundo Ricoeur, o desejo de traduzir está ligado à descoberta das potencialidades da língua de partida e dos recursos inexplorados da língua de chegada. Esse desejo diz respeito ao alargamento dos horizontes linguísticos. Trata-se, assim, do desejo de acolher outra língua no processo de transformação e de reconfiguração da própria língua.
É isso que a prática da tradução tem em comum com a invenção poética no interior da língua: o desejo de hibridizá-la, de torná-la excessiva e estranha a si mesma, mais aberta e mais fértil. Entretanto, diferente de Ricoeur, não tenho tanta certeza quanto às fronteiras entre o próprio e o outro. Recentemente produzi poemas duplos, com versões nas duas línguas, e uma série inteiramente em francês. Talvez por isso a escrita poética me conduza novamente ao desejo de traduzir, mas desta vez em sentido inverso, do português em francês.
Percebo que essa inversão do sentido tradutório habitual inverte também o percurso tradicional da importação/transformação cultural (antropofágica ou não...), que foi sempre da Europa à América, dos ditos “grandes centros” às “periferias” do mundo. Talvez essa representação dicotômica não faça mais tanto sentido quanto na época em que as vanguardas brasileiras inventaram e reinventaram a “antropofagia”, agora que a literatura francófona produzida na África ou nas Antilhas desperta mais interesse no Brasil do que inúmeros romancistas cujo sucesso não ultrapassa as fronteiras da “rentrée littéraire” parisiense... Também é claro que a língua e a literatura francesa deixaram de desempenhar o papel hegemônico que já tiveram. Mas para mim o que distingue esta língua em particular não é o prestígio cultural que ainda possa ter.
No trabalho de tradução que venho empreendendo há afeto, um cuidado afetuoso com a língua estrangeira convertida em ponto de chegada. Talvez por isso eu tenha escolhido traduzir sobretudo poetas mulheres que descobri com encanto no retorno ao Brasil. Este gesto não visa “colonizar” ou “descolonizar” o que quer que seja, também não tem pretensões “antropofágicas”. Nessa inversão do sentido tradutório que traz para o francês vozes femininas, o que secretamente desejo é “maternizar” esta língua aprendida.
 
 Língua materna
 
Ouve, meu filho, um tempo:
a língua era uma só
melodia
em redondilhas ingênuas
rimas minúsculas
e naturais
como passarinho em lata
de leite ninho
 
A língua, pura como água
em leite maternizado,
era
uma
única
imensa infância
 
Mas no leite vivo do meu peito
enriquecido
com variados nutrientes
esse ritmo
já veio entremelado
num outro mais lento, mais longo, sussurrada
monotonia, em doze doses, uniformes
 
Por isso o sabor da sua língua
foi sempre duplo,
maternelles, foram as suas primeiras letras,
mas múltipla de nascença, é sua infância
 
« Aucune langue n’est marâtre »
 
Chercher la chanson
que chantait ma mère
dans la mélodie
de l’autre langue
et nourrir l’autre
au sein de ta langue
du lointain écho
d’un chant
où souffle plus court
un air d’ailleurs
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