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VOLUME 1


MIGUEL FILIPE MOCHILA
Miguel Filipe Mochila nasceu em Évora, em 1988. Professor na Universidade de Porto Rico, tem colaborado com a imprensa em matéria cultural relacionada com as literaturas hispânicas, de que é investigador. Traduziu autores como Leopoldo Lugones, Roberto Arlt, Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sabato, Juan José Saer, Samanta Schweblin, Nicanor Parra, Blas de Otero, Ángel González, Claudio Rodríguez ou Joan Margarit. Além de poemas publicados em revistas e fanzines, publicou os livros Tempo da impaciência, em 2016, e Com a Língua nos Dentes, em 2018, ambos editados pela Artefacto.
LÍNGUA
 
Os gestos que já foram repetidos
e os objectos cujos nomes desconheces,
de tanto os teres dito,
segredam no silêncio.
 
As coisas outrora tuas foram gastas
e neste lado da casa há ruídos que caminham para a morte.
 
Escrever no pavor de que esta língua também morra,
de que tudo por sobre a terra caladamente morra.

​de Tempo da Impaciência


​

Às vezes sonho com poemas tão grandes que não me cabem num verso
e então visto um sobretudo contra toda a lamúria
tusso uma canção de concreto para pôr a pata sobre essa leveza inútil
lavo a cara com uma água tão quente que me embacia o olho lírico
como se segurasse uma lâmpada na atmosfera saturada de uma morrinha nuclear
e penso nisto
penso
que já houve dinossauros na terra a levar a cabo qualquer coisa
a meditar no marasmo dos degelos
em ervas tão altas para pescoços que também se torciam a baixa altura
que também já procuraram uma saída
árvores colossais que deviam fazer uma sombra gigante
homens brigantes
por um pedúnculo de fogo tão mirrado
procurando interpretar o capricho da luz com a sua bruteza
e a sua falta de jeito com as mãos
falanges flácidas, tremores, tambores na noite bárbara
desertos onde nem o moscardo era zumbido
no terror de ninguém
onde nem a chuva gravando os grãos era pretexto
para analogias vasculares de uma paixão excitada
pela sanguinária retórica dos séculos
onde ainda não havia língua para pôr as cartilagens
das mariposas a serem nervos nas angústias do eu lírico
onde ninguém suspendia o passo quando a vertigem
dos dicionários
assobiava na linha abrindo caminho para o passado
onde não havia passado havia mapas
tão pequenamente universais
 
E então eu sobretudo saio, saio à rua na esperança
de sondar nas goelas da terra um rastilho de napalm
e atilhá-lo à boca e atulhá-la
como se forçasse uma bola até ao estertor das costuras
e pudesse dizer logo tudo com palavras à beira de explodirem
como se não tivesse parte na ordem obscenamente destrutiva do real
e confirmo que as pessoas também mastigam palavras entre frituras e manteiga
que na pasta de pão e leite que enrodilham na boca
com a saliva na garganta amarrotada
com as gengivas velosas, veludadas
também levedam poemas futuros engolidos, coisas
de adão dormente que não cabem num verso, quanto mais
nestas vésperas do lixo, este poema
acrobata soluçando rendidamente na rede
de amor doente
e calibro uma palavra
perigosamente
como um grande peixe dos mares no chão tão alto dos aquários
de que levantado corpo com que infindável fôlego
ao arrepio do estupor maníaco das pachorrentas tardes
dos mesmos táxis de sempre nas luas roucas da cidade
com um cigarro mortiço a cochichar na cama
com o insulto das toadas natalícias
e a bílis aguada nas notícias
onde o inverno se amodorra
e eu
a calcular os dias aráveis sobre a língua
a calcorrear o sulco das sílabas na medida da costela ainda viva
e ser quem sabe essa tua costela cativa
no burburinho dos séculos posta enfim a medrar
a mudar-se no bicho que se me alojasse no olho
e com um franzir de patas, um adejar da brisa na pelugem
implodisse em mim um fosso até ao fundo do corpo
até ao fulcro do olhar
e pudesse ver: tu maestrina
a compores o tempo que zumbe agora sobre mim
num enxame apavorado
e o musicável mundo novo que em nós cala desde o princípio
principiando finalmente a cantar

​de Com a Língua nos Dentes

​
Não sei a quantos graus a tua boca estala
há um óvulo de ar marcescente que te cerca
deves ter a cama a relinchar na meia-luz amarga
o dia alastra-se como uma lagoa enorme fora
mas ainda deves estar a dar corda aos teus fantasmas
e eu aqui tão longe às vezes também preciso
de acordar enquanto dormes, sair à cidade que ronrona
na sua língua, para poder respirar um pouco
saber-te intransitável, confirmar que existe um tudo
aquém, que o mundo existe ao largo, além de ti
saber que não és enfim tão grande coisa
que devores cada um dos astros artificiais
que bordejando vão rendando os cordões das alamedas
já de rojo, rendendo-se ao sol que se insinua
no púrpura pegajoso dos portais, não és
assim tão grande que me não surpreenda
tão concreto, tão plausível, caminhando
por ruas revistadas por tristonhos varredores
pracetas salgadas por milhares de migalhas
que aspiram aos céus pilhadas por ventos e pardais
contentores onde se amodorra a solidão das cascas
de frutos que já se aguaram nos lábios de alguém
sair, enfim, para saber que não obstante
o mundo se move, que apesar de ti eu tenho álgebra
leitura e tesão e a curiosa habilidade
de habituar a vista ao escuro, e bolsos
tristes para mãos tão frias, olhos
para pernas ofegadas por miúdas desertadas
do enjoo dos bares, para um arrepio qualquer, pele
para qualquer tipo de reflexo, nervos
para macular de tatuagens
a plasticina burra do corpo para moldar
e derruir insolente, insolventemente
e estes pés este chão esta língua estas palavras
para ficar a pensar-te com os lençóis nos lábios
atravessada pela estupidez de um pensamento
mordendo um fio de boca, fazendo-o estalar no friso
como uma papoila na neve ou uma ameixa
calcada no asfalto pela carruagem bruta
com um sumo carmim a escorrer-te pelo queixo
como uma ferida que eu estancara com um beijo
e não seria difícil, tão miúda essa boca
pequena como tu, não houvesse luz, se à luz certa
também o ínfimo faz sombra de colosso
de Com a Língua nos Dentes
Laura,
estive a traduzir a noite toda
e cheguei a algumas conclusões sobre a língua
e quem diz a língua diz: as pessoas, o mundo,
todas as coisas que não são quase nada a não ser isso:
ligadas, linguadas
 
Por exemplo:
quando abri o prontuário e apontei o foco da lanterna às letras
enquanto as luzes da manhã iam já gorgolejando lá fora
e as pilhas sumidas do rádio faziam
o locutor dar gaguejos
descobri que é contigo que vou andar
quero dizer: pelo mundo
 
Sei isto porque estou sempre a declinar-te
em todas as pessoas em todos os tempos
por exemplo: Laura, a da flor do loureiro, a do louro
ao lume a alourar
e isto, na cozinha mediterrânica, é já um verbo
de movimento e som e cheiro
(não ouves o alho a marulhar, não sentes
do refogado o olor a azeite e salsa?)
– como outros por que nós cá nos regemos
 
Do reger és Laura também, a coroada
de louro, laureada
pois descobri
enquanto estava a tentar traduzir um verso
que é contigo que vou andar
pelo mundo
e és assim pois também Laura de andada em debandada
a noite toda por mim, a declinada
Laura
em todas as pessoas em todos os tempos
do presente perfeito
da conjugação primeira
de laurear​

​de 
Com a Língua nos Dentes


​​

​Se eu pudesse ser conforme
digo
se eu pudesse ser conforme em mim
ao que de mim próprio ainda me abrigo
e com as mãos, as próprias, estas minhas
com estas minhas próprias mãos moldar o lixo
e nos lábios tocasse a sossegada cova
que me abrisse em cama o mundo
que é grande e circunspecta
e tão atenta
o nácar vai sugando das pequenas coisas
até da flora já tisnada
até da erva mais findada
nos olhos embaçados de lonjura
na língua que não sabe já cantar
e com estes mesmos lábios e com esta mesma língua
do lado de lá dar notícias do outro lado
e não seria outro pois se sendo este
este mesmo mundo com estas mãos, com estas mesmas minhas
libélulas nos lábios com estes mesmos lábios
a chupar um ar sedento
um sem resto ar e tão ligeiro
a engoli-lo todo de uma vez
e seria a única, única vez, perene, a repetir-se
seria já sem míngua
só já grande alegria de ser como as mãos que enfim se calam
nas palhas de um regaço frondoso de água
moldado a luz moldada a malga
por sujas mãos findo o trabalho, tornado a casa
o operário procurando a mulher como quem a procurasse
de a saber já achada de a ter já tolhida
em si
se como ele então pudesse eu ser-me inteiro
e não só de amor em amor não só de floco em floco
não só a nevar de alba o pentagrama fosco
de ternura banal, de delicadeza às escuras
que se nos engolfa aos dentes como um grito rouco
se eu pudesse ser pois mais eu e não só de pouco em pouco
mas no próprio corpo
digo
no meu próprio corpo fosse forte
no próprio amor metido até ao osso
em afanoso trabalho, em ditoso trabalho
de lisura e transparência
e em decência, em constância, em permanência
fosse eu inteiro e fosse fácil
ser-me
e pudesse então ser já sempre o meu primeiro
o meu mais alto eu imaginado
e ademais disso o seu contrário
e em tanto não me ser contrário nisso
e me fosse pois fácil abrir caminho por entre as áscuas
e me fosse pois ligeira a braçada que me acendesse as águas
e me fosse então breve soprar o sopro abstruso
para longe para longe
como um enigma de cotão
e às palavras frustes também dizê-las
digo:
aceitá-las acoitá-las
assinalar ao de leve um lugar de fala
que as disparasse
sem desperdício
e findo o suplício
dizendo eu
me pudesse eu já calar
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