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VOLUME 3 


MARÍA SÁNCHEZ
María Sánchez é médica veterinária e escritora. Colabora habitualmente em publicações sobre literatura, feminismo, criação de gado, cultura e meio rurais. Cuaderno de Campo é o seu primeiro livro de poemas e Tierra de Muejeres, um ensaio sobre mulheres e o meio rural, o seu livro mais recente. Publicará, em 2020, Almáciga, um glossário de palavras usadas no meio rural. Website.

Os poemas aqui publicados foram traduzidos do espanhol para o português por Patrícia Lino.
CARTA AO PAI

Não sujes a pele ao sangrar o cordeiro se do erro nasce a beleza ao passar a agulha no silêncio faz-se o grito homens de sangue e terra nunca choram o rosto queimado de fazer-lhe sombra a voz da casa torcendo o limoeiro chamando todas as lebres Casilda Padre que eu fique como estou não vou aguentar os pontos que se fazem no estômago e também não sou uma trepadeira que passa sempre o inverno diz-me o que é que anoto agora neste caderno se todos os pássaros não cantaram ou se esconderam ao longe há sempre um cavalo tombado a morrer eu não quero que o meu amor morra eu quero a leveza dos insetos a árvore a levantar-se sigilosa a infância que tive uma faca na garganta
de Cuaderno de Campo, La Bella Varsovia


A ÚLTIMA FERIDA
Aqui
aos que não veem o mar
reconhecêmo-los
porque levam
sempre
uma espiga
cravada
no peito

​
de Cuaderno de Campo, La Bella Varsovia

​

​OLHA, A AVE ESTÁ A ESCREVER
yo fui bendecido en dachau,
allí bendecían la comida,
la comida de los cuervos

Yoram Kaniuk
porque sonhava quando vinha a fome e não a sede imaginava parir dunas e rochas   uma águia recém nascida e quente, placenta e penas, bico e cordão umbilical, porque tinha fome vinha o sono e dava filhos ao deserto, animais — olha a ave está a escrever olha a ave está a escrever e podes ler funeral, mamã, funeral, papá, funeral — irmão, queríamos preparar-te o ninho com leite e com saliva, irmão, queríamos preparar-te o ninho e não benzemos nem a carne nem o rapaz, irmão, queríamos preparar-te o ninho e sem querer estrangulamos-te, trazíamos raminhos na boca, pedras nas mãos, demasiadas veias entrançadas em penas e sal.
inédito


MONÓLOGO SOBRE O INSTINTO E A ENTREGA


                                                                Cortaron el trigo. Ahora
                                                                mi soledad se ve mejor.
 
                                                                
Sophia de Mello Breyner Andresen

 

São Francisco de Assis dirigiu-se às aves
chamou-lhes irmãs impôs o silêncio disse-lhes
— agora quem fala sou eu sou eu
 
que sonho com todas as asas de borboleta
arrebatadas
uma a uma
para enterrá-las junto ao corpo de milhares que
pereceram
há milhares e milhares de anos
(pétalas, pequenas deidades animais feitas
de barro, ventres que se esvaziaram para dar
vez à mirra)
 
mas cabe-me a mim falar
que sou um organismo como qualquer outro,
infinidade de posibilidades, de células
chocando umas com as outras, uma
imensidão de impulsos
 
—repito--
como os de qualquer um que se debate
dentro por igual
entre os estímulos da destruição e da
sobrevivência

a mim
que estou a escrever estas linhas que vês
diante de ti porque voltei a procurar
a técnica de datação por carbono, os
enterros paleolíticos, o processo de
embalsamamento e preparação do defunto
no antigo Egipto
a mim
que como tu
quero
o remédio da bondade
o exercício exato para perpetuar-me
o reconhecimento o refúgio
a venda a dor
tudo
todas as coisas necessárias

a mim
que observo os meus dentes e as minhas mãos
cada parte de mim abreviada
como escrever sempre ADN e não tentar 
ácido desoxirribonucleico
a mim
porque gosto de situar as coisas
na região exata
dar-lhes um significado
prover-lhes uma história
a mim
que não sou São Francisco
nem vocês minhas irmãs, as pobres 
andorinhas

a mim
que não suporto a ideia de ver-me falar com um
animal
para pedir-lhe que se cale
que prefiro a cura e não o silêncio

mas de cada vez que escrevo
contradigo-me
a mim mesma
ao converter-me na irmã,
no profeta que se senta diante dos 
pássaros
pedindo-lhes por favor de novo

silêncio

porque no final calam-se
as asas da borboleta, o irmão e as
andorinhas,
e é a minha vez de falar.
​
de Cuaderno de Campo, La Bella Varsovia

​
Nada mais a não ser conhecer o seu irmão disse:
"Eu sou a montanha"

e o predador recriminou-a:

escreve-se por acaso
para os desafortunados?


​inédito
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