VIRADA
  • VIRADA
  • VOLUMES
  • + INFO
VOLUME 1


LUÍS QUINTAIS
Luís Quintais nasceu em 1968 em Angola. Antropólogo, poeta e ensaísta, leciona no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Como poeta, publicou A Imprecisa Melancolia (1995), Lamento (1999), Umbria (1999), Verso Antigo (2001), Angst (2002), e Duelo (2004), obra a que foram atribuídos o Prémio Pen Clube de Poesia e o Prémio Luís Miguel Nava — Poesia 2005. A coletânea de poesia completa Arrancar Penas a Um Canto de Cisne venceu o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE/C.M. de Amarante 2015-2016. Website.
QUATRO SONETOS

I
E lembro-me das cidades: o dédalo
no meu sangue florindo que depois
ébrio foi das pétalas este velo
de treva cobrindo-nos aos dois.

Atento lembro-me, e da morte sou
já o teu émulo; sede cantada
de espúrio mestre à métrica dou
o nocturno gesto, a forma lançada.

Sobram da treva razões e desvelos,
estradas, asfalto, melancolia,
e o coração conhece, saberá

depois uma densa cor de cabelos
desenhando no rosto a antes porfia:
da escrita e do mapa a infância será.



II
Infante, a imagem da flor porfiada
cresceu nesse corpo como memória.
De séculos e usos foi a flor cantada
e das pétalas quis a teoria

fria. Uma sombra ou vestígio de um mapa
alaga cidade e periferia,
duro ofício de exuberante sapa,
legível dor e mortal alegria.

Maturo o luto e a forma antecipada,
a antes dita natureza das coisas,
o que guardas hoje sob o iceberg

evolutivo, esta doença dada.
Cada página é das imprecisas
manhãs a noite e o violento sangue.


​III
Tu contemplavas a tragédia humana,
seus diversos ângulos percorrias,
exaurias-te em desvios, urbana
viagem por onde te esclarecias.

Explodia o mundo. Uma madrugada
de regressos e as anotações breves,
vozes perenes que afinal descreves,
sonham a escura dádiva cantada.

Mas o canto morreu, escutaste a sua
agonia? O que faz continuar
este balbuciar de erro e lamento?

Que figurações de fúria e momento
são do brando tempo o fogo e o amar?
Que sentido se oculta e se acentua?

​

IV
Eras vidro de opacos pensamentos.
Pelas ruas ias numa deriva
que esclarecia sinais mais atentos,
e a dor que se te exasperava viva

era o lugar, a dura voz de um outro,
narcótico acto que te prometia
o jogo mortal, o exame mais neutro.
E o absoluto rigor ainda feria.

Escutas a imóvel dor que te dizia
o nocturno espelho, a sua memória,
súbito eco que te assusta e comove,

pêndulo sem poço que te sacia
ainda, regresso de vozes e escória,
da Lisboa triste o sentido leve.
​
© COPYRIGHT 2020. VIRADA. ALL RIGHTS RESERVED.
  • VIRADA
  • VOLUMES
  • + INFO