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VOLUME 3 


LUCAS AUGUSTO DA SILVA
Lucas Augusto da Silva nasceu em 1990 em São Bernardo do Campo (SP). É sociólogo e poeta, autor do livro Revelação (Recanto das Letras, 2017). Atualmente organiza a Antologia Poética da Imigração Lusófona em Portugal (Editora Kotter).
O BOLDO

Como se me conhecesse há anos, olha-me o boldo. Não sua. Suspira como se me conhecesse há semanas, como se não fosse nosso primeiro dia de convivência. Não suo, mas reflito pacientemente sobre a sua capacidade de suspirar como se me conhecesse há décadas.

É seu, disse-me a amiga. Agora olha-me o boldo como se nos conhecêssemos há muitos (talvez um milhão de?) segundos. Segundo: olho para o boldo e reflito com curiosidade sobre suas pernas envelhecidas. Seguro a ansiedade e, seguro da fatalidade das coisas vivas, entorno água no regador. Terceiro: entorno a água do regador num banho curioso que se dá em coisas vivas e suspirantes. Entrego-o ao sol.

Solto, de casa em casa, solto no mundo, o boldo que agora me conhece há cerca de quinze minutos a sós começa a suar devagarinho. Formato-o: estendo uma fôrma de madeira por debaixo de seus braços, na altura do sovaco. Desgarro da atividade necessária e inicio a atividade secundária: contemplo-o. Depois de cerca de algumas semanas, começarei a atividade terciária: bebê-lo-ei.

É sua, disse-me a amiga ao entregar o boldo anteontem. O quê? A falsidade do falso-boldo. Faço-o de companheiro, mas sempre mantenho meus segredos encapsulados. Antes, naquele mesmo lugar, naquela mesma varanda, em que tudo era igual exceto pelo boldo, soltava sozinho os ruídos do meu sigilo. Enquanto fumava, é verdade. Fumava. Agora contemplo-o com a curiosidade de quem não se deu conta.

Eu disse-lhe que era stress. O quê? A causa da minha gastrite. Ângela deu-me o boldo. É seu. Agora o falso-boldo não é mais dela. Eu disse-lhe eu quero um epocler. Ângela trouxe-me o boldo. É seu.


(Pergunte às pessoas porque escovam os dentes antes de dormir. É assim que se detecta o quão conscientes estão de seu aprendizado. As que dizem que o fazem porque é necessário, porque assim foram ensinadas a proceder, porque assim o recomendou o dentista, estas pessoas não compreenderam o sentido da vida. Adestraram-se contra si mesmas. Assumiram como seu o destino de outra pessoa. Diferente: as pessoas que escovam os dentes antes de dormir porque só assim podem então descansar, porque lhes faz sentir bem, porque lhes dá a sensação de pureza e angelicismo, estas sim entenderam tudo. Ou seja: deixam de ser pessoas e, ao mesmo tempo em que desejavam sólidas a conversão angelical, se tornavam cada vez mais parecidas com os equinos mais estúpidos.)


Solto em outra casa, o boldo deixou de respirar. Não morreu, contudo. Nem sofreu tampouco. Apenas deixou de respirar para se fingir de inobjeto. Tipo assim: para de me olhar. Para deixar de ser coisa a ser olhada, sabe? Para se fazer de pombo o pavão. É seu, disse-me Ângela. Deixa de querer ser anjo, Ângela. Disse. Surre-lhe logo a cara. Solto.

O boldo é uma espécie de planta africana. Cuidado com o falso boldo, dizia a manchete, disse-me Ângela, disse eu a ela. Ângela-Boldo, Ângela-Fera. Nunca é bom em excesso. Uma xícara de chá é suficiente. Do boldo. Disse-me a amiga a entregar o boldo.


(Quem seremos nós em cento e poucos anos? Seremos nomes. Sobre o que falarão os além-de-nomes sobre nós? Sobre nossos nomes. Posto que falarão, que falem dos nossos. Nossos “Ângela e Eu”. Falarão que fui hipócrita? Falarão dos gatos da rua que olham o boldo. Olham dentro dos meus olhos e na sua direção, mas certamente enxergam o boldo. Falarão da minha carta de suicídio? Escrita por Ângela depois de me açoitar. Investigarão minha letra? Descobrirão que nunca escrevi este texto que escrevo agora? Que foi Ângela pelas mãos do boldo que desenhou estas palavras? Certamente falarão do boldo.)


Devolve-me o boldo, Ângela disse-me. Não suei, nem entreguei sua-minha-nossa eu ou ela. Devolve meu boldo, e fez uso do pronome possessivo. Via, é claro, a deterioração da planta. Um qualquer câncer que lhe causei. Foi de propósito? Foi, que vergonhas há em? O boldo chegou que me olhava. Inteira. Chegou que me despia. Inteira. Chegou que me não queria. Suei. E foi a primeira gota de suor que um dia me caiu do rosto. Foi dos olhos? Foi, que não há vergonha nem. Inteira. Suor dos olhos à planta dos pés.

O boldo ignorava a confusão. Fingia-se de inteligente sendo burro, sabe? Fingia-se de qualquer coisa. Fingia-se até de boldo. E só quem chora sabe: de boldo aquele boldo não tem nada. Boldos éramos nós as duas. Bôldicamente boldas. As duas brigando pelo amor de uma planta cega. E acenávamos ao boldo. Ao boldo cego. Acenávamos, na verdade, à cegueira do boldo. O boldo era jovem em festa do asilo. Arrogantemente boldo. Devolve-me o meu falso-boldo, Ângela engoliu.
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