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VOLUME 2


LORENZO GANZO
Lorenzo Ganzo (Porto Alegre, Brasil, 1992) formou-se em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apresentando um trabalho às voltas da poesia de Roberto Bolaño. Publicou, em 2019, um pequeno livrinho, Luz de Fundo, pela Guaipeca Edições. Atualmente cursa o mestrado de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa, cidade onde caminha, perde-se, e, eventualmente, escreve algum poema.
CINCO POEMAS COM SANGUE
​
I
É meio dia e trinta e cinco
quando coloco ao sol no parapeito da sacada
a sacola plástica com bifes congelados
que a avó deu presente preocupando-se
com a possível falta de ferro no sangue
dos filhos e dos netos.

II
Com os dedos úmidos
desgrudo a carne separo pedaços
as fibras se rompem retiro gorduras
penso no livro de carne do Artur Barrio
quem tem estômago para ler
uma história escrita com sangue?
Mas todas as histórias
são escritas com sangue.

III
Bigornas e martelo qual o peso
médio do coração de um boi
Yasmin, Adelaide?
Quantos hematomas no corpo do poema
para torná-lo forte?
quantas porradas, Alvim,
para amaciar a carne?
e se você usar uma faca,
como é que fica?

IV
Quando se retira o sangue
diz-se que está curada.
É assim que se prepara o jamón
deixa-se o bicho pendurado por meses
o sabor vai apurando concentrando.
A geladeira passa a noite toda acesa
penso nos hospitais desta cidade,
em Roberto Bolaño e na luz fria dos frigoríficos.

V
Coloco o livro do Barrio no varal
dizem que é assim que se faz
para salvar um livro encharcado
conjuntos em vermelho ao invés de lençóis.
O homem vestido de preto
parado do outro lado do pátio
em frente ao portão me pergunta
- o que pensas que estás fazendo?
                              -estou tentando salvar este livro.


​Guindastes, mas nenhuma carga
os braços esticados nas roldanas
letras que formam a palavra amigo.
Crescer é ver o dinheiro por todo lado,
navios migratórios e caixas eletrônicos.

Mas é sempre ao lado a vida -
este desvio - a pedra quente
onde deitas o peixe,
o anzol que atiras ao mar
também acerta o teu coração,
mas só pratico a pescaria
nas festas de São João, Cecília.

Os diários de Emilio Renzi, o fim do ano
e o verão desta vez um bocado longe.

Guindastes, mas nenhuma carga.
Entras na nova estação com roupas velhas.
O peixe na pedra, as roldanas, São João,
e novamente, letras que formam a palavra amigo.

​MERCADO EM MADURAI


Há muitas imagens e o sol
é comprido no balcão
deste mercado em Madurai.

A luz atravessa tapetes, tecidos
reflete nas moedas seu brilho
de transações e lucro : o olho
esquerdo de Kali, protetora dos bandidos,
pousa nas mãos de um comerciante cego
que já não pensa nos filhos, mas sonha
todas as noites com o mesmo enigma.

Uma nuvem de canela, açafrão e cúrcuma
sobe apagando das formas o seu fundo.
Logo aparece minha irmã ou é o seu vulto
um cirurgião atento que respira baixo
na hora dos asanas é a respiração
o que interessa. Não se tens pressa
ou logo precisas abandonar aquilo.

Perto dali, a multidão se senta
nos degraus que levam ao templo
você toca no meu corpo e pede
que escreva o nome disto
diz que confia na nuvem e exige
que cessem os saques e que Kali
                 descanse.

Os cabelos crespos, a multidão assiste
um monge que levita. Talvez o enigma
no sonho do cego ou simplesmente
esta luz que entra e expande tudo
Você toca no meu corpo enquanto
os animais se deitam na nossa cama.
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