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VOLUME 3 


JULIA DE SOUZA
Julia de Souza nasceu em São Paulo, em 1986. É poeta, tradutora e mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. Publicou As durações da casa (2019), Gigante vermelha (2016) e Covil (2013), todos pela Editora 7Letras.
ÉVORA
 
​Você suporta o mapa nas coxas.
 
Queremos voltar nessa viagem
à intimidade perdida
com os mapas e mais que isso
saber
por que caminho se chegava
aqui antes de nós — havia clãs
antes de nós, havia mundo e
as negociações que forjam
inevitavelmente o mundo.
Queremos saber desta cidade
quantos são os seus brasões e
onde se estampavam
e se também eram de árvore
os nomes dos seus reis
 
agora me lembro
já estive aqui
este é um bom lugar
para se perder o nome
quando cai a luz.
 
Você suporta o mapa
reconheço teu esforço
só o que queremos é ver
no mapa, em seu destino circular
um bom motivo para não sair
desta matriz --
acender uma vela
a pilhas, esquecer dos vivos e
quem dera
desses cães a esmo que
engordam o tempo


ESTRANGEIRO
 
Jurou conhecer
cada lugar de
cada página da
national geographic:
 
nem é tão frio no pólo sul
nem é tão grande o saara
eu tive um tigre de bengala
uma amante de pedra
na ilha
de páscoa; pra cá
acho que vim de trenó
acho que vim de navio
trinta dias ou mais
num balanço
até o porto de
santos
 
(pausa, suspiro, página virada)
 
é
um dia desses
preciso parar e
lembrar de tudo
o que fiz.



ORECCHIO DI DIONISO
 
Cada corpo que ali entra
fecunda um pouco a pedra



ETNA
 
Talvez seja assim o fim do mundo
uns poucos homens escalando
entre bombas de lava seca
as costas negras de um vulcão --
 
as flores de cor
e forma coral
que ignoram a neblina
a terra desolada
​

DIANA EFESINA
  
Diana,
corpo epidêmico
cacho de tetas
à caça dos confins.
Leões
lobos
bodes encrustados
cavalos em salto, Diana
teu corpo cultiva
tudo o que se esquiva
 
Diana, onde estão teus cães?
Diana, você já viu o mar?


WILDLIFE
Para o Italo


​Dá para filmar a felicidade?

Temos esse direito?
​

Agnès Varda em Le Bonheur
​
​Dormi por sete noites num travesseiro escavado
nas ruínas do Hotel Glória. Talvez a insistência
 
dos olhos abertos
o nenhum ruído dos olhos abertos
(e não a chave roubada, não o cativeiro)
tenham me obrigado a ficar.
 
Penso na graça de um possível título:
O vírus virá dos rodapés,
 
e na ala amazônica do Jardim Botânico
imagino que o corpo ofídio da árvore
assustaria teus hábitos; somos
 
criaturas de hábitos e às vezes
o amor não passa
de objeto de circunstância
um guerrilheiro de férias,
na mata --
alguém que olha fotos de animais
silvestres antes de dormir
 
*
 
A árvore de Madagascar se chama
árvore-do-viajante;
fotografo a árvore, fotografo a placa
viajamos juntos pela rua encharcada
você me leva pela mão frouxa, pequena
 
e a roupa cola no corpo em poucos
segundos
 
*
 
(Passo as tardes traduzindo
e nos intervalos assalto seu altar
à procura de grifos, ossadas
de um amor mais robusto
e tento de novo
não ver carne nas páginas
tento não ver, mas tenho
o pessimismo dos
detetives: vejo a carne,
vejo o dorso ferido das páginas
e penso: somos reciclagem
manutenção
somos restauro?)
 
*
 
(Não te falei do coqueiro
da Gávea
não fotografei o coqueiro
da Gávea, a gravidez
de frutos castanhos
sua quase queda
mas foi um prazer conhecê-lo)
 
*
 
There’s a virus on this island
me disse a alemã alaranjada
na entrada do ferry; mas
 
não morri engasgada
você me olhando surdo
pela ressaca, não morri
engasgada na esquina
 
*
 
nós agora somos o tempo
 
é a frase que guardei para uma hora
boa e bonita, a hora azul
dos amantes a perigo
que eu marcaria
durante o sono
onde só teu olho de ciclope
invertido pode ver
 
*
 
Somos nós dois um mesmo contágio
esperamos mais de trinta anos
por uma semana dessa alegria
 
grega:
 
toda felicidade é inédita e
de repente as mãos não tremem mais --
 
depois das tuas lágrimas
Shangai estará pra sempre
dormindo


BUNKER
Daqui a pouco estaremos mortos
​

​​Só desejo o nome da flor para
fazer durar a nossa carne
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