VIRADA
  • VIRADA
  • VOLUMES
  • + INFO
VOLUME 3 


HEYK PIMENTA
Eu sou o Heyk, Heyk Brauner Pimenta Estanislau, tenho 33 anos. Sou brasileiro, nasci num povoado cafeeiro da Zona da Mata de Minas Gerais, filho de uma professora de matemática e de um mecânico de motos. Tenho quatro irmãos e um filhinho de 4 anos. Aos 8 me apresentei na escola lendo um poema, aos 9 escrevi uns à minha namorada. Aos 17 nunca mais parei. Como poesia não compra sapato, trabalhei como lanterneiro, borracheiro, garçom, atleta, almoxarife, leão de chácara, na construção civil e na metalurgia. Em 2007 publiquei a primeira plaquete, e passei a trabalhar na cadeia da poesia, em livros, revistas, jornais, eventos, coleções, blogs e oficinas. Participei da exposição Poesia Agora no Museu da Língua Portuguesa e da exposição S.O.S Poesia no Museu de Arte do Rio. Publiquei poemas em revistas no Brasil, Colômbia, Espanha, Portugal e Estados Unidos. Organizei os livros Maio de 68, Tom Zé e A moda e o novo homem de Flávio Carvalho pela Azougue Editorial. Publiquei os livros de poemas Sopro sopro (edições Maloqueirista, 2010), Kraft - poemas (Cozinha Experimental, 2014), A serpentina nunca se desenrola até o fim e a plaquete Surrado (7letras, 2015 e 2019). Procuro casa para os livros Se te amarrarem na estrada e Coração fodido. Hoje dou aulas de sociologia e oficinas de poesia num Brasil que pede socorro.
​SE TE AMARRAREM NA ESTRADA
seus dentes podem perfeitamente cortar a corda se te amarrarem na estrada

desde que você me perguntou se
um anjo do senhor se prestaria à indignidade
de ficar no meu encalço
recebi notícia de que nunca mais
poderia andar a cavalo sob as traves
do campão nosso cheiro era cavalo
e cuspe seco
pelo corpo

um cavalo é mais alto que um ônibus e víamos

as meninas do ovo frito
a varanda do marujo
meu joelho destampado
donana dizendo com mil réis eu comprava
duas calças pro meu pai trabalhar

por cima dos muros
como espíritos

zoé tem engatinhado pela padaria
finge não estar atrás de nada
o rosto pintado de amora
e pedaços de guardanapo
andar sozinho é pra cowboys, gato
você pode trocar por exemplo
seu revólver por uma passagem do
302 e saltar no alto da boa vista
seus dentes podem perfeitamente cortar a corda se te amarrarem na estrada

khalil anda escrevendo cartas
e é o primeiro de nós
a saber o que é cuidar de um bebê

mas sempre desaprende
precisa desaprender.

essa mistura, pequena,
formou santos e falsários que amamos copiosamente
por isso não se preocupe tanto
com o vestido

ninguém é mais bonito que você
quando te vejo abrir a porta
depois de um dia bom
os cavalos comem a corda na via Light
o sol nos pinta
​
os 39 peão
​
Amília tem 21
já tomou remédio já foi demitida já foi na biblioteca
de Americana e pegou uma porrada
de livro de poesia e teve que operar
porque fodeu o punho na confecção

a direita roda muito mal mesmo
depois da cirurgia não firma direito
nem pra escrever nem pra computador
em fábrica não entra mais
tá decidida mas também não pode

com essa porrada de livro passa
a chave no quarto e passa
a tarde
a mãe oferecendo coisa chamando gritando
tá pensando o quê parece que não tem mãe caralho

Não dá pra saber no que
vai trabalhar agora
mão fodida é foda
vai ficar aí pra sempre
tá achando que é rica

A vida nas portas das confecções

A Tabacow
máquina do tamanho disso aqui tudo
quilômetro de tapete por dia
20m de largura e quilômetro de tapete por dia
trama e tinge trama e tinge tem que ver tem que ver

poc poc poc poc poc poc
tsitsi tsitsi tsitsi tsitsi
tchtchtchtchtchtchtchtch
pocpocpocpocpocpocpocpocpocpoc

poc poc tsi tsssssssssssi

E o seu Aníbal pai dela demitido
E a Amília pronta pra se salvar com alguma onda hippie
A mãe na porta
E a Tabacow esperando o arresto dos bens
De porta fechada

Os 39 peão junto com seu Aníbal olhando o tempo
Esperando audiência
os paranazinho os baianinho os monte azul
os boia média os QSL alumínio
e um monte de seu Anibo mais velho faltando tudo vendo se algo vira
​
a vida nas portas das confecções a roda dentada da Anhanguera

dois dias antes da conferência

Todas as pessoas que conheço
querem
ou vão querer
ser
incendiárias

quando sonham veem o lobo
umas veem o caçador
poucas se veem pastando
juntas
ao lado do lobo
que também pasta
sem conseguir
já não tem dentes

Todas as pessoas que conheço
querem
ou vão querer
ser
incendiárias

a cheia diz
barragem
atendem a fazem

mas cada litro seu tem placas de ferro nos ombros

dentro das casas
os moradores viram barragens
dos berços dos chiqueiros
mas a água acha pouco
o tutano deles
têm ossos moles
e os leva

a cheia diz
barragem

e lhe dão as costas

chumbam roldanas nas casas
enfeitam remos
ensaiam ladainha
de navegação

Todas as pessoas que conheço
querem
ou vão querer
ser
incendiárias

Não é por isso que os cavalos
aceitariam os ternos que lhes fazemos
e também não plantam flor ou verdura
guardam um pedaço do bruto puro
que por tanto tempo
vestiram
pensativos
ainda nos dão garupa
por cortesia e para nos
contar das assembleias
¿quantos pistões carrega o amor desses partidários?

Todas as pessoas que conheço
querem
ou vão querer
ser
incendiárias

Mesmo as que só querem
queimar o vizinho
têm como ninguém
um plano ideal
para o mundo

sei de quem junte dinheiro
e estoque querosene em casa

o lobo de cada uma
guarda
papéis dobrados
nos bolsos
sobre o que fazer
com o fogo

fico pensando o que
esses lobos de óculos que passam
as manhãs lendo nas padarias
pensam de nós ao dobrarem
pernas tão finas
​
são elegantes como ciganos
​vampiros
falsificadores
de uísque
mas levam megafones
na valise

já vi mais de um
me olhar com doçura

ficamos mesmo para trás
amarramos o sapato antes
de vestir
não serviu

talvez consigam ainda
aprovar a escravidão

devolvo o olhar com condescendência

aos doces o dulcíssimo

Todas as pessoas que conheço
querem
ou vão querer
ser
incendiárias
​
a maioria quer
nisso
um jeito de quebrar
os relógios
© COPYRIGHT 2020. VIRADA. ALL RIGHTS RESERVED.
  • VIRADA
  • VOLUMES
  • + INFO