Helena Costa Carvalho nasceu na Nazaré, em 1982. É investigadora no CLEPUL-FLUL e bolseira de doutoramento da FCT, preparando uma tese sobre a obra de António Ramos Rosa. Tem publicado poesia e prosa poética em revistas e colectâneas portuguesas e brasileiras. Recebeu, em 2012, o Prémio Revelação de Poesia da APE — Associação Portuguesa de Escritores.
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ASPETTARE STANCA
Lavorare stanca, diz Herberto citando Pavese quando sonha visitas extraterrestres de mulheres. Creiam: mais cansativo do que lavorare é aspettare. Aspettare stanca, com as suas asas de chumbo átono em batimento irregular, stanca meridianamente do sol alto à cabeça lustre do insecto -- à desilusão. Lavorar aos vinte sob a estrela da inocência treinando as mãos para bordar sépalas em vez de flores matar se preciso, e os músculos refeitos a cada noite; aos trinta esperar sobretudo : lavorare e aspettare enquanto um deserto se faz e desfaz com o mesmo sol ao alto e a hipnótica visão de como cada coisa morre dentro de outra coisa antes de conseguirmos atirar. Soubesse o poeta o que nos pedia que afinal nestas idades ainda não, talvez nunca poemas sadios hasteados na alta montanha pequenas proezas de escalada. Creiam portanto: lavorare stanca mas esperar dá piores ressacas. |
CALIGRAFIA
Montávamos a emboscada da noite o círculo azul em forma de acontecer e eu (camisa branca rendada em corpo nu) esperava-te caligráfico já potável a oxigenação da escrita devolvida ao rosto Dispunhas circular o alfabeto dentro dos vasos da água a paixão botânica -- uma letra para cada haste a forma breve de um pássaro quase polinizando quase feito para voar Li-te da mão aquática a palavra pronta performativa gesta a entumecer o mundo e quis a palavra água sorvida toda eurítmica em duplo gole Contigo também eu seria água maré levantada de demorado pousio em golfada atlântica pés ardendo sobre o sal Um modo grego de modulação cantado em pontas assim a caligrafia ampliasse pulsátil nota evidente arroios mansos nas linhas do rosto |
O corpo tendia para a crucificação
o justo golpe em espaço livre no tempo em que
a tarde queimava num banco de jardim
e os seres sonhavam a geração inteira na sua sobrevida,
o dorso quente sobre a madeira a exalar
temores, respingos de ar
a fome cortesã.
Éramos o alvorecer, os deuses juvenis a que Deus
dava calor e bênção, assombro térmico
de mão vulcânica sobre as frontes mornas
quase aéreas
despregadas pela compaixão.
Do corpo sabia-se pouco mais que a ânsia
replicada a cada ano, ouvia-se dele
o sopro avulso
o assobio do cutelo raiando o sexo,
sabia-se por vezes a seda mínima
fugitiva,
e um odor de especiaria adocicando parques
e caves íntimas, incenso-fátuo
nas tardes que ebuliam precoces
de tanto verão.
O PENSAMENTO À SOLTA
O pensamento à solta num país distante. Que chegue depois da comoção, que seja trémulo que o comovam pequenas praias, líricas um jeitinho de poeta as mãos morenas raiadas de cristais. Que acenda como sal, coisa indígena de atear. Língua roçada cantada na fuligem. O pensamento em salto livre e a estrada larga a festa das parcas e dos orixás quando deus é, salve Nietzsche! um pequeno animal sacrificado virado ao chão já a rúptil besta mínima. A pele obscena escaldada ao ar e o verão vasto mestiço ruborizando telhas e varais. |
CIÊNCIA DOS APOCALIPSES
Será breve a visão de fim de mundo
se é ainda uma canção que penduras
no peito como uma tristeza velha
de trazer por casa.
O mundo acabará sem retiros de silêncio
gomo a gomo, pela porta aberta em
sentido inverso. Dele guardaremos talvez
a metáfora ácida, a insónia vertida a frio
em rolos fotográficos dispostos
na alvorada.
Amanhecer será a ciência dos que aprendem
a lavrar molduras à medida das cheias
em quintais insones e,
alagados, erguem o focinho à tona
a entoar canções.
Será breve a visão de fim de mundo
se é ainda uma canção que penduras
no peito como uma tristeza velha
de trazer por casa.
O mundo acabará sem retiros de silêncio
gomo a gomo, pela porta aberta em
sentido inverso. Dele guardaremos talvez
a metáfora ácida, a insónia vertida a frio
em rolos fotográficos dispostos
na alvorada.
Amanhecer será a ciência dos que aprendem
a lavrar molduras à medida das cheias
em quintais insones e,
alagados, erguem o focinho à tona
a entoar canções.