Gustavo Reis Louro nasceu no Rio de Janeiro, onde graduou-se em Letras em 2013 e concluiu o mestrado em Teoria Literária em 2016, sempre pela UFRJ. Em 2017, mudou-se para os EUA, para completar o doutorado em literatura brasileira pela Universidade de Yale, com especial interesse pela poesia concreta, a tropicália como movimento cultural, a filosofia da linguagem e da história e a teoria da tradução.
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Nelson Pereira dos Santos. Vidas Secas. 1963
Vidas Secas, do diretor brasileiro Nelson Pereira dos Santos, é um definitivo ponto de inflexão na representação da miséria no cinema. Dos três filmes, este talvez seja o único em que se alcança o equilíbrio entre o impacto da visão da pobreza extrema e, ao mesmo tempo, um senso de preservação e respeito aos despossuídos, sem degradá-los, como faz Fernando Birri em Tire Dié, ou estilizá-los, como Margot Benacerraf em Araya.
Esta comparação tem muito de arbitrário, uma vez que Vidas Secas é um filme de ficção, enquanto os outros dois têm raízes no documental — ainda que a própria Benacerraf não considerasse Araya um documentário no sentido estrito do termo, mas um “poema”[1]. Contudo, não é uma questão de decidir qual dessas formas, o cinema de ficção ou o documental, representa com mais “fidelidade” ou da maneira mais “apropriada” a miséria, mas sim é observar como cada uma dessas obras usa a linguagem específica do cinema para construir sua narrativa de imagens, quais efeitos podem ser percebidos no espectador e quão bem-sucedidos eles são na consciência desse espectador, para além de uma mera adesão ou repulsa instintiva. Nesse aspecto, o filme de Nelson Pereira é destaca-se dos outros dois. Boa parte disso se deve ao fato de que, além de dominar a linguagem do cinema, Vidas secas é também excelente enquanto adaptação cinematográfica do romance homônimo de Graciliano Ramos, de 1938, como observa Darlene Sadlier[2]. O que o romance faz em palavras, o filme recria em imagens, a linguagem específica do cinema. E um dos maiores trunfos do romance deGraciliano é justamente sua capacidade de mimetizar a extrema indigência material do retirante nordestino Fabiano e sua família, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia. Na narrativa, essa indigência se traduz também no plano da fala: Fabiano e os seus são quase afásicos. A fala é uma espécie de índice de classe, que lhes é negado. Como assinala Haroldo de Campos: |
O logos oprime. É a fala do poder do “soldado amarelo” contra a revolta desarticulada, afônica de Fabiano: rugido gutural de bicho. Dominar o logos é aceder à condição de hominidade. Mas o logos despista. O logos é minado pelo ideológico. O texto pobre denuncia a retórica da falação, da mais-valia bem falante. [3]
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Esse silêncio despotenciado de Fabiano e dos seus, que enforma o romance de Graciliano Ramos, domina também o filme de Nelson Pereira dos Santos. A primeira fala só é dita mais de cinco minutos após o início do filme, por Sinhá Vitória, quando mata o papagaio da família para comê-lo. Ela se justifica dizendo que o animal “nem servia para nada. Nem sabia falar”. O valor é medido pelo poder de fala; quando ele não existe, não há serventia ou valia, e, nesse ponto, a família de retirantes equivale ao papagaio.
Até mesmo quando os personagens ganham voz, eles parecem não se compreender uns aos outros. Isso é muito nítido na cena do diálogo de Sinhá Vitória e Fabiano. Nela, Vitória indaga ao marido que fim levou Seu Tomás da Bolandeira, homem de posses, cuja figura serve de contraste aos retirantes. Fabiano responde que não sabe e desfia suas recordações dele. A partir daí, o que deveria ser um diálogo familiar torna-se, na verdade, uma sobreposição de solilóquios, já que cada um externa as próprias recordações que tinha do homem, ou mais precisamente, de suas posses. Vitória invejava a cama de couro que ele possuía, para ela um símbolo não apenas de status, mas de dignidade (“Vamos dormir em cama de couro. Vamos ser gente” repete ela ao longo do filme). Fabiano, por sua vez, lembra impressionado quão articulado era o homem. “Seu Tomás é que era homem de valia. Falava bem”, diz ele, reforçando as ligações entre fala e poder no universo de Vidas Secas. Durante todo a cena, Fabiano e Vitória falam um por cima do outro. Falam, não ouvem, já que em Vidas Secas, fala não é sinônimo de comunicabilidade. Muito pelo contrário, na maior parte do tempo ela é sinal de intimidação e opressão. Sempre que lhe dirigem a palavra, Fabiano se encolhe, seja para o patrão, para o soldado amarelo ou para o coletor de impostos. O drama material é simbolizado e ao mesmo tempo potencializado pelo drama da linguagem no filme. Vidas secas consegue assim representar a privação extrema sem espetacularizá-la, mas também sem edulcorá-la. Não trata de achar uma solução de compromisso para acalmar as consciências do cineasta e do público, mas sim de compreender que nem este nem aquele fazem parte do grupo representado na tela e que, portanto, o sofrimento e a dessensiblização provocados pela miséria devem aparecer para o espectador de forma clara. Esse foi o equilíbrio que Pereira dos Santos conseguiu, e que nem Birri nem Benacerraf atingiram em seus filmes. Isso não torna Vidas Secas seja um filme mais fácil de assistir do que os demais. Muito ao contrário. Vidas Secas é um filme literalmente doloroso de assistir, sensorialmente doloroso. Dói nos olhos e nos ouvidos, e, nesse sentido, é absolutamente coerente com o projeto estético de Pereira dos Santos, que se define como um cineasta que trabalha não só com os olhos, mas também com os ouvidos. A câmera faz com que o espectador vivencie, por meios cinematográficos, o que Fabiano e sua família experimentam todos os dias de sua existência no sertão.Um dos meios usados para fazer o espectador sentir o que sentem os retirantes é a filtragem da luz pela câmera. O branco do filme é extremamente saturado, queimando os olhos do espectador e replicando o inclemente sol agreste. Além dos olhos, o espectador também tem os ouvidos feridos pelo som das rodas do carro de boi que acompanha toda a narrativa, inclusive na primeira e na última cenas, assinalando a circularidade de sua condição, como a de gado no curral. Aliás, a metáfora da vida de gado para Fabiano e sua familia merece atenção. A equiparação da vida humana à animal foi um expediente também usado por Birri em Tire Dié, na cena em que a montagem faz parecer que as crianças e os porcos comem a mesma comida. Em Vidas Secas, ao contrário, a técnica é mais sutil, uma vez que a câmera de Nelson Pereira dos Santos age não em termos paratáticos, bestializando o elemento humano, mas numa espécie de construção em abismo, em que o sofrimento de ambas as partes, humana e animal, fica patente na tela. Isso pode ser percebido, por exemplo, na cena em que Fabiano está conduzindo uma vaca pelo sertão. O animal, exausto, desfalece e a câmera, em close up, capta sua respiração arquejante e agonizante, como se fosse transferido ao animal todo o sofrimento por que passa a família, lembrando o desejo expresso por Sinhá Vitória minutos antes, de que aquela vida acabasse logo. O maior exemplo, contudo, é a antológica cena da morte de Baleia, em que agonia do animal é toda captada pelos lances da câmera, que emulam o ângulo de visão da cadela enquanto se ouvem seus ganidos de dor. Isso solidariza todos os seres viventes no sertão no mesmo drama existencial, e é uma das razões que tornam Vidas secas um filme ao mesmo tempo poderoso e empático em seu retrato da miséria material. NOTAS [1] Cf. Karen Schwartzman. “An interview with Margot Benacerraf: Reveron, Araya, and the institutionalization of cinema in Venezuela”. In: Journal of Film and Video; Fall-Winter 1992; 44, 3-4; FIAF International Index to Film Periodicals, p. 51. [2] Cf. Nelson Pereira dos Santos. Urbana, University of Illinois Press, 2003. [3] Metalinguagem e outras metas. São Paulo, Perspectiva, 2006, p. 228. FILMES Araya. Direção: Margot Benacerraf. França-Venezuela. 1959. Jogue uma moeda (Tire dié). Direção: Fernando Birri. Argentina. 1959. Vidas secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Brasil. 1963. |