VIRADA
  • VIRADA
  • VOLUMES
  • + INFO
VOLUME 2


FRED SPADA
Fred Spada (Belo Horizonte, 1982) é poeta, editor e tradutor. Publicou os livros Arqueologias do olhar (Funalfa, 2011), Coleção de ruínas (Macondo, 2014) e Breve itinerário de uma não viagem (Megamíni/7Letras, 2019). (O poema «Instinto» foi previamente publicado na revista eletrônica Ruído Manifesto.)
​FEUILLE DE ROUTE
Onde fica essa ilha a que só chegamos por naufrágio?
Vasco Gato
​Há uma ilha que se move
em meio a um mar que não se vê,
alheia aos ventos e às correntes,
às intempéries e às marés.
Há esta ilha – e ela vive.
Vive, porque é o deslocar-se
que a torna ilha,
e de outra identidade não carece,
como tampouco lhe importam
as latitudes e longitudes
a que a sentenciam
as cartas geográficas.
Há uma ilha que se move,
porque demasiado humana
para geologias.
Segue anônima, compondo a multidão
– mar a inundar as ruas e avenidas –,
alheia a quem lhe cruza o caminho
e às paisagens que atravessa:
norte de si mesma,
autômato em seu vagar diário,
descobre a ilha-homem, algo abismada,
ser, não embarcação que singra os mares,
mas frágil resquício de seu próprio naufrágio.


INSTINTO

Como os gatos
aprender a se pôr à espreita
em silêncio
calculando o ataque
com frieza e exatidão
estar também preparado
para a fuga
antever a ameaça
projetar o salto a corrida
ou a imobilidade
mas sobretudo
aprender a quem confiar os afetos
e recolher as garras
quando a pele do outro
sabe ao toque delicado dos amantes

​
PROCURAR EM MEIO AOS CACOS
o corte
construir com os destroços
a memória
cicatriz do tempo
habitar o inabitável
​LEITURA ÀS CEGAS
Ao Mariano Alejandro Ribeiro

​Antes da iluminação, a memória
                                            o deslocamento.
Fechar os olhos como quem,
habituado à escuridão,
antevê a cegueira da luz.
Tatear as praias da infância,
subir aos telhados da adolescência,
escrever a jovem madurez dos dias
como quem acumula séculos às tintas
que pesam sobre o papel –
Antoine Doinel à portuguesa,
a entoar um fado
                          tango
                          blues
meditabundo,
a colher mirtilos
                  arandos
                  medronho
                  groselha.


Procura em ti
o que não encontrares
em lado nenhum:
uma esquina que ligue
a calle Corrientes
à avenida da Liberdade;
o direito à solidão;
a Gioconda, a Notre Dame;
o elétrico que atravessa
o Atlântico
e põe em movimento Romeo
                                            Patti
                                            Lou
                                            Dylan


os beatniks.
Como o Vagabundo de Santa Teresa,
escolher tudo,
mas sem trocar
uma vida pela frente
pela dor das memórias.
Antes da iluminação, não temer a luz –
e, como Whitman,
abrir os olhos bradando
I sing the body electric.


ANTI-ÍCARO

Ensaio a queda
como quem antevê
no fracasso
o próprio triunfo.
​

ORAÇÃO
d’après Max Martins
​
Santíssima Trindade do Nome,
o Homem, a Letra, o Poema –
em tudo a Vida se consome,
mas à Esperança adeja.
Que diante do Silêncio
a Voz não trema.
© COPYRIGHT 2020. VIRADA. ALL RIGHTS RESERVED.
  • VIRADA
  • VOLUMES
  • + INFO