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VOLUME 3 


FERNANDO PAIXÃO
Fernando Paixão nasceu em Portugal e vive em São Paulo. De início, teve longa carreira como editor profissional; nessa área, organizou Momentos do livro no Brasil (1995, Prêmio Jabuti). Em 2009, ingressou na docência acadêmica e, desde então, leciona literatura no Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo. No ensaismo, entre vários livros, publicou Arte da pequena reflexão (Iluminuras, 2014), sobre o gênero do poema em prosa. Dedica-se também à poesia, com 6 livros publicados, desde 1980.
​TARDE

Anda que corre que pula que cai
e sai do outro lado e vai
ou praqui ou prali ou pra-lá-de-lá
e ri!

Enrola roda e em roda rola quem tá no meio
e de fora canta
conta monta coisa tonta pra deixar zonza
e pumba!
​
Pega o bobo que é todo tolo e tonto
o zaronzo bando
correndo vazio e suando frio e pegando nada
de tudo que é esquivo
e muuuuua!
​

​
Rosa dos Tempos, Editora Pau-Brasil, 1980
1
A lua é da noite
os peixes das águas.
Só as palavras são
do homem.
Vagas que preenchem
o declive dos vazios.

126
dizer o que a boca fala
falando o que diz a boca.
Formar o que o corpo toca
tocando o que forma o corpo.
Acontece de vir
o que vem e acontece.
Tudo em nada, nada em tudo:
o mesmo todo.
​
​
Fogo dos Rios, Editora Brasiliense,1989
​
​NADADOR

No semicírculo de ar
a mão clareia
asa extenuada
projeta-se ao fim.
Músculos tocam o arco do dia
sugam a derradeira força
de penetrar no meio
escuro
dentro da água
côncavo da noite:
o círculo puro.
AZULEJISTA

Superfície descarnada para o sono
perde pedaço a pedaço
pelas mãos do azulejista.
A parede crua desaparece lenta
submetida ao capricho
de uma pele de esmalte e infinito.
E a claridade
antes repousando em poros
sobre que rebrilhos fluirá?
Ausente. Ele maneja massa e quadrados.
Constrói o azul.

​

​25 Azulejos, Editora Iluminuras, 1994
ANTIGAMENTE​

Nas guerras de antigamente
os rios seguiam as batalhas
com o seu bordão triste.
Soldados feridos e curvados
vinham morrer na quietude
das margens acolhedoras.
O correr das águas acompanhava
o derradeiro baque. Havia
o encontro heróico do sangue
com o nascer da lua no horizonte.
Cada guerreiro valia por um mito
sugerido nas linhas do céu.
O embalar do rio lhe servia de manto
(ah, os ossos entregues ao chão)
nas guerras de antigamente.
​

INICIAÇÃO

A minha primeira (e única) tourada
deu-se num outono de sol generoso
devidamente suspenso no limite
à linha curva da sombra.

Pouco entendia daquele triunfo
prometido na cena dos cartazes
e na buliçosa perfeição da tarde.
Acomodei-me no anônimo das gentes.

Aberto o portão, as patas vinham.
E eram as mãos do artista
que lhe conduziam o ponteio
nervoso caminho para o espanto.

O inesperado veio quanto um dos toureiros
estremeceu no gesto, rolou
no chão em busca de vida. Dividiu-se
o corpo
entre o rosto medroso e as vestes heróicas.

Outros touros chegaram.
De chifres armados
repetiram o fracasso dos instintos
embebidos numa ilusão vermelha
e conhecida.

Aos poucos o sol abandonou a arena
deixando a sombra tomar conta do círculo:
preparativos da lua cheia

6.

A noite é uma fruta costumeira
que sai das mãos maternas.
Aos poucos aparece crescida
nos hábitos da casa.

Certa vez entrou pela janela.
A passos largos distendeu
em vermelho tinto
um sem-número de cavernas.

Mas terminou resignada
igual às outras:
pálpebra escura e grave
sobre as casas.
​

​Poeira, Editora 34, 2001

​
​CANTIGA D’AMIGA

Ah, tua chegada ao meu corpo — os dedos
são remos aéreos em bordo cego.
Roçam-me o ventre num brindar de aedo
e breve me vencem os teus chamegos.

De que me vale dizer ao desejo:
não!? Se a própria mão escreve que sim
e na pele recebo o teu cortejo
sinto-me uma cortesã carmesim.

Tuas unhas. Louca. Quero ser loba.
Inteiro bardo no centro das curvas
ocupa-me a lua no vão das pernas.
Quero-te em mim erguido em asas:

voooooooooooa!
​
E que ao venceres a distância pouca
quero ser loba. Tuas unhas. Louca.
​


​SÃO PAULO, teu nome

Urbinácia máxima imperfeita
lençol de eus e meus em multidão
plantada em hastes, a planalticeia:
cidade inventada a cada pessoa.

Teus homens, mulheres e moribundos
vestem a roupa clara das manhãs
à noite desapertam os calçados da tarde
ora com nuvens, ora sem elas.

Levam às ruas o coração fechado
enquanto os olhares usurpam cores
das feias esquinas à quimera das vitrines
atados estamos ao preço das coisas.

E a matéria vivida coexiste calada
nos cômodos das mesmas casas
soma de tantos gestos e sentenças
manchas úmidas nas paredes gastas.

Insones atravessam a tua madrugada
acionam os remos largos da memória
e no amanhecer fecham os olhos cansados
indiferentes à altivez dos arranha-céus.

Na praça do bairro aparecem as primeiras
crianças – as que se interessam pela terra
acreditam na sombra das árvores
e acolhem faceiras a luz deste dia.

Aos poucos – avenidas, viadutos, prédios
despertam os músculos, os ossos e o rosto.
Novamente o corpo se levanta por inteiro
novelo de artérias sem fim nem começo.

Teu nome, São Paulo, induz ao engano,
tão pouco de ti lembra santidade.


Porcelana invisível, Editora Cosac Naif, 2015

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