Elisa Wouk Almino já traduziu para o inglês Paulo Leminski, Luciany Aparecida e Caio Fernando Abreu, entre outros. É a tradutora do livro This House, uma coleção de poemas de Ana Martins Marques. Elisa é editora da revista de arte Hyperallergic e editora do livro Alice Trumbull Mason: Pioneer of American Abstraction. Seus ensaios já apareceram na New York Review of Books, Paris Review e The Nation, entre outros. Ensina crítica de arte na Catapult e tradução na UCLA Extension. Mais informações aqui.
|
traduz
ANA CRISTINA CESAR
ANA CRISTINA CESAR
Ana Cristina Cesar (1952-1983) nasceu no Rio de Janeiro. Formada em Letras pela PUC-Rio, mestre em Comunicação pela UFRJ e em Teoria e Prática de Tradução Literária pela Universidade de Essex, na Inglaterra. Integra o grupo de poetas reunido por Heloísa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje (1976). Para além de poeta, foi jornalista, tradutora e crítica literária.
|
Entre 1979 e 1981, a poeta Ana Cristina Cesar morou na Inglaterra, estudando tradução na Universidade de Essex. Durante esse período, conheceu a artista plástica Bia Wouk, minha mãe, que morava em Paris. As duas se tornaram boas amigas e passaram a desenvolver sua amizade principalmente através de cartas. Ana C. trabalhava no seu livro Luvas de pelica, que ela descreveu em uma carta para Bia como “o tal diário da moça que foi parar na Inglaterra e que não sou eu (?).”
Juntei uma dessas cartas com um trecho de Luvas e um telegrama que Ana C. mandou para Bia Wouk quando já estava de volta no Brasil. Há várias imagens e ideias que se repetem nesses três pequenos textos (“Ler é meio puxar fios, e não decifrar,” escreveu Ana C.). Uma ideia que ela gostava de elaborar em cartas para minha mãe, uma artista plástica, era do “olhar estético,” que acabou sendo um grande tema também em Luvas. |
Cartão postal do quadro “Rokeby Venus” (1647–51) de Diego Velázquez, que Ana C. enviou a Bia Wouk.
|
18 agosto 80
|
Anjo do coração,
Angel of my heart,
|
Estou te mandando esta figura que eu gostei de ver aqui e que tem anjinho, espelho, e ela nua de costas, e dizem que uma malandragem (o espelho não podia refletir nunca a moça daquele ângulo). Fico olhando também para a gracinha do seu cartão. Às vezes acho graça nossa correspondência puxando para o estetizante, já quis a “sujeira” de falar sem anjinhos nem rascunhos, tipo polaróide. Aí a gente vai e faz arte. Não faz arte, menina, dizia mamãe que anos depois pegou o diário secreto. Às vezes não.
I’m sending you this image that I enjoyed seeing here and that has a little angel, mirror, and she naked from behind, and they say is a trickery (the mirror could never reflect the girl from that angle). I also keep looking at your sweet card. Sometimes I find it cute how our correspondence leans toward the esthetic, I once wanted the “dirt” of talking without angels or sketches, polaroid-style. Then we go and make art. Don’t play around, girl, said mom who years later took my secret diary. Sometimes not.
|
Estive em Yorkshire, de onde vem o namorado inglês, e vi os moors e a terra das irmãs e os ventos uivantes e a Velha York. É lindo, dramático, escapando o estereótipo inglês que bate mais no sul. [...] De resto, fora ocasionais ataques de incerteza sobre futuro, estou escrevendo menos do que gostaria o tal diário da moça que foi parar na Inglaterra e que não sou eu (?); invejo a tua disciplina e a estrutura que já vem antes — eu fico meio sob a ditadura da inspiração estou pensando em capa/ilustração, na minha cabeça era uma coisa como Velázquez, uma cena simples de mulher, se você olhar um pouco mais dá para inventar metáforas do diabo, mas que silêncio. De vez em quando vou flanar em Londres que está simpática; estou curtindo cabelo querendo virar punk e (horror) aprendendo a patinar com roller skates espaciais, dói tudo, roxa de tombos, mas agora ou vai ou racha. A ginecologia anda toda atrapalhada e irrita demais a indiferença da medicina gratuita.
I was in Yorkshire, where my English boyfriend is from, and saw the moors and the sisters’ origins and the wuthering heights and the Old York. It’s beautiful, dramatic, escaping the English stereotype that you see in the south. […] Otherwise, besides the occasional attacks of uncertainty about the future, I’m writing less than I’d like that diary about the girl who went to England and that is not me (?); I’m jealous of your discipline and sense of structure that came from before — I sort of remain under the tyranny of inspiration; I’m thinking about the cover/illustration, in my mind it’s something like Velázquez, a simple scene of a woman, if you look a bit longer you can make up diabolical metaphors, but what silence. Sometimes I’ll stroll in London which is nice now; I’m into hair wanting to be punk and (the horror) learning to skate with space-age rollerblades, everything hurts, purple from falling, but it’s either now or never. My gynecology is all messed up and the indifference of free medicine is very annoying.
|
Questão Brasil está em cima e às vezes aperta. [...] Lá tem o que mais sinto falta aqui — contato com gente produzindo e o lance de publicar em cima. Vantagem de trabalhar com imagem. Mas às vezes queria ter à mão certos desenhos que curti para ficar relendo igual livro e eles vão sumindo pelo mundo. A propósito de produção, ou de correspondência, reli meu livrinho de exatamente 1 ano atrás. A técnica central — abuso de entrelinhas — é que acho que está dando agora para levar além, ou seja, para soltar mais, com você diz. Lá a entrelinha ainda é dura, e não adianta que é tudo metáfora mesmo, e tudo carta.
As for Brazil it looms and sometimes hurts. […] There’s something there that I miss the most here — contact with people producing and the possibility to publish instantly. The advantage of working with images. But sometimes I’d like to have in hand certain drawings that I enjoyed, to keep rereading like a book, and they go disappearing in the world. On the topic of producing, or correspondence, I reread my little book from exactly 1 year ago. Now I think the central technique — winking at the reader — can be taken further, in other words, loosened up more, like you said. There the winking is still too stiff, and there’s no use because everything is a metaphor really, and everything a letter.
|
[...]
beijos beijos beijos
Ana
beijos beijos beijos
Ana
[…]
kisses kisses kisses Ana |
Foto que Bia Wouk fez de Ana Cristina Cesar no Jardin du Luxembourg
Dia seguinte.
Nesse ponto, me lembro agora, Mick entrou no quarto. A camisola estava pelo avesso. Lá estávamos outra vez com sociologias, ele muito oferecido na ponta da cama, até que me pus a passar baby oil nas mãos, lambança, e daí para os cabelos, e para os cabelos dele, beijos molhados que hoje dão maldade e gostinho de tortura. De manhã horas na cama, elaborando carta para Mick com medo de um Jack que abriria a porta a qualquer momento, vingador. Desci ainda do avesso e tinha correio, envelope chique com colagens de fotos (“cena de abril”, se chamava), cartão com flores de néon, finesse de poucas palavras e um abuso de entrelinhas. Depois cuidei do banho que me dá aflição quando termina. Cozinhei para a primeira moça que conheci nesta cidade. Não melhorou ela falar de guerra atômica e da Atlantis irlandesa de onde ela escapou aos bofetões porque queriam que ela visse não sei o que no filho dela. O almoço tinha muita pretensão. Falei de Mick versus Luke e ela deu palpite. Me senti inconfidente, conversação traindo meu I Ching, já disse. Fiz promessa de abstinência a repeti a palavra flippant várias vezes. Tem alguma utilidade. Ela aliás também se chama Chris que era ainda o nome de um pastor alemão no Brasil mas sem h. Espiou cena de abril que eu tinha deixado no canto de propósito e comentou que lá (no Luxembourg) eu tinha cara de mais velha. Apreciação que me adulou. Ela saiu para o dentista às três e meia.
Nesse ponto, me lembro agora, Mick entrou no quarto. A camisola estava pelo avesso. Lá estávamos outra vez com sociologias, ele muito oferecido na ponta da cama, até que me pus a passar baby oil nas mãos, lambança, e daí para os cabelos, e para os cabelos dele, beijos molhados que hoje dão maldade e gostinho de tortura. De manhã horas na cama, elaborando carta para Mick com medo de um Jack que abriria a porta a qualquer momento, vingador. Desci ainda do avesso e tinha correio, envelope chique com colagens de fotos (“cena de abril”, se chamava), cartão com flores de néon, finesse de poucas palavras e um abuso de entrelinhas. Depois cuidei do banho que me dá aflição quando termina. Cozinhei para a primeira moça que conheci nesta cidade. Não melhorou ela falar de guerra atômica e da Atlantis irlandesa de onde ela escapou aos bofetões porque queriam que ela visse não sei o que no filho dela. O almoço tinha muita pretensão. Falei de Mick versus Luke e ela deu palpite. Me senti inconfidente, conversação traindo meu I Ching, já disse. Fiz promessa de abstinência a repeti a palavra flippant várias vezes. Tem alguma utilidade. Ela aliás também se chama Chris que era ainda o nome de um pastor alemão no Brasil mas sem h. Espiou cena de abril que eu tinha deixado no canto de propósito e comentou que lá (no Luxembourg) eu tinha cara de mais velha. Apreciação que me adulou. Ela saiu para o dentista às três e meia.
Next day.
At this point, I remember now, Mick entered the room. My nightgown was inside-out. There we were again with the social studies, he offering all of himself on the edge of the bed, until I started to rub baby oil on my hands, slimy, and then on my hair, and then on his hair, wet kisses that today give me a wicked feeling and the little taste of torture. Hours in the morning in bed, writing a letter for Mick afraid Jack might open the door at any moment, vengeful. I went downstairs still inside-out and there was mail, a chic envelope with collages of photos (“April scene,” it was called), a card with neon flowers, refined in so few words and excessive between the lines. Afterward I prepared a bath which makes me anxious when it’s over. I cooked for the first girl I met in this city. It didn’t help that she spoke of nuclear war and the Irish Atlantis from where she escaped under beatings because they wanted her to see who knows what in her son. The lunch was very pretentious. I spoke of Mick versus Luke and she had her say. I felt indiscreet, the conversation betraying my I Ching, as I already said. I promised abstinence and I repeated the word flippant many times. It’s somewhat useful. She is actually also called Chris which was still the name of a German shepherd in Brazil but without the h. She spied April scene which I had left in the corner on purpose and said that there (in the Luxembourg) I had an older face. Appreciation that wooed me. She left for the dentist at three thirty. |
Que tristeza esta cidade portuária. Subo London Road de bicicleta e sinto as bochechas pesarem.
Comprei um cartão de avião para Malink — um avião roliço, tropical, feliz de estar partindo.
Estou há vários dias pensando que rumo dar à correspondência.
Em vez dos rasgos de Verdade embarcar no olhar estetizante (foto muito oblíqua, de lado, olheiras invisíveis na luz azul).
Ou ser repentina e exclamar do avião — não me escreve mais, suave.
Comprei um cartão de avião para Malink — um avião roliço, tropical, feliz de estar partindo.
Estou há vários dias pensando que rumo dar à correspondência.
Em vez dos rasgos de Verdade embarcar no olhar estetizante (foto muito oblíqua, de lado, olheiras invisíveis na luz azul).
Ou ser repentina e exclamar do avião — não me escreve mais, suave.
How sad this port city is. I go up London Road by bicycle and I feel the weight of my cheeks.
I bought a card with an airplane for Malink — a round, tropical plane, happy to be departing. I’ve been thinking for many days where to steer my correspondence. Instead of the scraps of Truth embark on the esthetic eye (a very oblique photo, from the side, the bags under my eyes invisible in the blue light). Or be spontaneous and exclaim from the airplane — don’t write me anymore, suave. |
Opto pelo olhar estetizante, com epígrafe de mulher moderna desconhecida (“Não estou conseguindo explicar a minha ternura, minha ternura, entende?”). Não sou rato de biblioteca, não entendo quase aquele museu da praça, não tenho embalo de produção, não nasci para cigana, e também tenho o chamado olho com pecados. Nem aqui? Recito ww pra você: “Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou eu que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?), caio das páginas nos teus braços, teus dedos me entorpecem, teu hálito, teu pulso, mergulho dos pés à cabeça, delícia, e chega --
Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente deslizando, chega de passado em videotape impossivelmente veloz, repeat, repeat. Toma este beijo só para você e não me esquece mais. Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora repouso minhas cartas e traduções de muitas origens, me espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta, dardos e raios à minha volta, Adeus!
Lembra minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto”.
Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente deslizando, chega de passado em videotape impossivelmente veloz, repeat, repeat. Toma este beijo só para você e não me esquece mais. Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora repouso minhas cartas e traduções de muitas origens, me espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta, dardos e raios à minha volta, Adeus!
Lembra minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto”.
I opt for the esthetic eye, with an epigraph by an unknown modern woman (“I’m unable to explain my tenderness, my tenderness, you understand?”). I’m not a bookworm, I hardly understand that museum on the square, I don’t have the knack for production, I wasn’t born to be a gypsy, and I also have so-called sinful eyes. Not even here? I recite ww for you: “Love, this is no book, it is I, it is I you hold and it is I who holds you (is it night? were we together and alone?), I fall from the pages into your arms, your fingers drowse me, your breath, your pulse, I immerge from head to foot, delicious, and enough, chega --
Chega de saudade, secrets, impromptu, enough of the gliding present, enough of the past on videotape impossibly fast, repeat, repeat. Take this kiss just for you and no longer forget me. I worked all day and now I retire, now I rest my letters and translations from many origins, a sphere more real than dreamed, more direct, awaits me, darts and rays about me, So long! Remember my words one by one. I may return. I love you, and depart, I disembodied, triumphant, dead.” |
de Luvas de Pelica (1980), pp.67-69. Edição independente
OCTOBER 20, 1981
TELEGRAM BIA WOUK SQS 213 BLOCO D APT 403 BRASILIA/DF HOW MUCH IS THE ONE WITH THE LITTLE SHOES CROPPED IN BRIGHTER COLORS THAT I BUY BEFORE AND RECEIVE AFTER PARIS BECAUSE IF YOU MADE MAIL ART OR POST-CUBIST OBJET TROUVÉ IN THE HAPPENSTANCE OF BRASÍLIA I’D SAY INSTEAD OF SUBLIMATING PASTING THE TELEGRAM ON THE HALLWAY OF MIRRORS TO FRIENDS A LA HOCKNEY ET WITH ADDED EXTRAVAGANCE THAT AN ESTHETIC EYE AS MUCH AS BAD EDUCATION DON’T SPARK AND NO LONGER DISGUISE SAUDADE SAUDADE URGENT IMPORTANT FROM THE ANGEL SUSPENSION POINTS WHO EXTERMINATES SUSPENSION POINTS THE PAIN STOP ANA |