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VOLUME 1

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CIDINHA DA SILVA
Cidinha da Silva é prosadora e editora. Tem 16 livros autorais de literatura publicados, entre eles: Um Exu em Nova York (contos, 2018); #Parem de nos matar! (crônicas, 2019, 2ª edição) e a série Melhores crônicas de Cidinha da Silva (volumes 1,2 e 3, 2019). Tem textos publicados em catalão, espanhol, francês, inglês e italiano. ​Seus livros estão disponíveis no site da Kuanza Produções.

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QUERUBIM PRETIM

O diploma a esperava na secretaria da universidade. No trajeto de trem e metrô, o velho filme de sacrifícios passava na janela de todos os dias. Sorriu orgulhosa de si e correu para a casa da avó que preparara bolo e café para a comemoração.

A velha senhora molhava as plantas de costas para a rua e pensava na neta quando ouviu seus pulinhos, os mesmos desde criança. Pulinhos e palmas, as palavras engolidas pela alegria, os braços abertos e a corrida para abraçá-la. Querubim, você chegou. Trouxe o diploma? Trouxe, vó, trouxe sim, olha!

Alexandra agora tinha uma profissão, um ganha-pão e muitos sonhos. O mais imediato deles era ter seu nome num cartão de visitas: Alexandra Amoreira – Tradutora de Libras. O outro era colocar peitos, o implante já estava marcado dali a seis meses. Precisava apenas juntar o dinheiro. Tudo direitinho, feito por uma médica recomendada por amigas, num hospital decente. Fazia acompanhamento no SUS há quatro anos e tinha fé que nos próximos dois conseguiria se livrar daquilo que nunca fora seu.

A avó não gostava da ideia, tinha medo, dizia que seu Querubim não seria uma coisa nem outra, seria um ser estranho no mundo. Alexandra retrucava, estranha ela já se sentia vivendo naquele corpo. Querubim pretim (a avó alertava), toma cuidado, meu dengo, não vá procurar sofrimento. Eu quero é livramento, vó, livramento.

E Alexandra bateu em muitas portas à procura de trabalho. Mesmo havendo um universo amplo de ONGs para atender, conseguiu menos respostas positivas do que imaginava. Teve gente que implicou com sua voz, mas ela teve presença de espírito e perguntou se a voz que não agradava contaminaria seus gestos.

Ainda trabalhando menos do que desejava, exercia a função de tradutora de Libras, não recusava trabalho, todos frilas, pois ninguém queria contratá-la para algo mais duradouro, nem aquele banco que vendia a imagem de compromisso com a diversidade. Acontece que o processo de transição amedronta meio mundo.

Chegado o grande dia, achou que seria muito forte para a avó acompanhá-la durante a cirurgia. Convocou uma amiga sapatão, que todo mundo achava barraqueira, para brigar pela vida dela, caso fosse necessário. A avó só seria avisada quando passasse o efeito da anestesia. A amiga, daquelas que resolviam tudo, passou de carro na casa da avó para levá-la ao hospital.

Querubim pretim, ela dizia acariciando-lhe o rosto e reconhecendo a menina amada desde pequena, você é teimosa, procurou sofrimento. Não, vó, foi livramento o que procurei.

Agora, quando andava pelas ruas e ouvia toda a sorte de grosserias e propostas vulgares feitas pelos homens, caras de nojo e credo em cruz por parte das mulheres, pensava se a avó não teria razão. Retornou aos antigos lugares de trabalho. Recebeu reticências e recriminação nos olhares das pessoas, ao mesmo tempo que desejavam seu corpo transgressor. Ela não tinha olhos nem pensamento para flertes, só queria ser admitida para exercer sua habilitação. O trabalho ia escasseando até que uma ex-contratadora foi direto ao ponto e lhe explicou que precisavam de pessoas mais sóbrias para a tela nas transmissões em vídeo. Ela portava muita diversidade num corpo só: cabelo volumoso, cor demais, um rosto bonito, porém anguloso e andrógino, e o golpe de misericórdia: os seios transbordantes. Precisavam de figuras mais discretas, que chamassem menos atenção.

Achava um absurdo escorar-se economicamente na avó, mas o dinheiro estava acabando. Além disso, não queria interferir na rotina pacata da velha, na relação de décadas com os vizinhos que a respeitavam.

Sendo cem por cento sincera, Alexandra tinha medo de se tornar mais uma vítima da sanha assassina dos carrascos que agiam à luz do dia naqueles tempos de sombras, instigados e protegidos por altas patentes, que lhes permitiram matar sua amiga Dandara, a pauladas. Também não gostaria de fazer programas, contraditoriamente, o único trabalho que parecia lhe sorrir. A avó tinha razão? Teria mesmo buscado sofrimento?

Para sair do beco estreito e mal iluminado que a vida lhe impusera, criou um perfil numa rede social e marcava encontros com homens que se faziam de finos, inteligentes, interessantes, mas na hora H se mostravam toscos, rudes. Apanhou de alguns, ficou presa numa casa com dois gringos que ameaçavam matá-la se ela não cumprisse a maratona sexual de quinze dias, tempo de duração da viagem para conhecer os prazeres do Rio. Eles lhe forçavam a tomar pílulas que a deixavam acordada, e ela já não sabia mais o que era dia ou noite, nem se sairia viva dali. Deixou por lá seis quilos, desenvolveu olheiras e hematomas assustadores, foi diagnosticada com hepatite e temeu ter adquirido doenças incuráveis.

As amigas a convidavam para se prostituir fora do Brasil, pegar homem rico. Alexandra era um tipo que faria sucesso em Milão, Paris, Barcelona. Ela resistia, não queria interromper o tratamento no SUS.

Não tinha muito tempo para pensar em afeto. Amor, só conhecia o da avó, mas quando imaginava uma situação de carinho com alguém, de intimidade sexual, pensava em mulheres e alguma coisa lhe aquecia o peito, lembrava-se das meninas que lhe despertavam desejo na adolescência. Tinha vontade de formar um casal afro-centrado com uma mulher, ter filhos talvez – duas mães lindas, amorosas. Mas só conseguiria quando eliminasse o constrangimento do próprio corpo excitado, um corpo que ela não
reconhecia.

Na puberdade aquele sentimento era impossível de compreender: como é que ela gostava de meninas sendo menina também? Não fazia sentido, aquele corpo a deixava confusa. Por isso ela sempre fugiu dos meninos-machos que a convidavam para aventuras atrás do barranco ou na fábrica abandonada. Ela desconfiava de que eles queriam fazer dela uma pata ou uma galinha de quintal, arrombada e depois largada no mato, agonizante. Tampouco conseguia se relacionar com meninos gays que a viam como um igual.

Tudo floresceu e passou a fazer sentido no dia em que ela viu aquele casal de lésbicas pretas no Bar da Luzia. Ela reparou quando uma delas foi buscar o vinho no balcão. Uma taça de vidro, outra de plástico. A mulher ofereceu a taça de vidro para a amada e bebeu na outra.

Notou também quando elas terminaram o vinho depois de tantos beijos e risos e uma quis beber água. A mulher que recebeu o vinho se levantou dessa vez, e, quando voltou, a outra estendeu a taça de plástico na qual havia bebido para receber a água. Ela não aceitou. Pegou aquela que fora a sua taça, a de vidro, colocou um pouco de água e movimentou-a, fazendo o vermelho do vinho escorrer para o fundo. Bebeu o líquido avermelhado. Depois encheu a taça limpa de água e deu-a à amada, na boca.

Ali, Alexandra compreendeu tudo, ficou enternecida, se emocionou mesmo. Tanto mundo, tanto mimo em gestos de delicadeza que mostravam que valia a pena viver e cuidar, amar. Ela sonhava com um relacionamento assim, com uma mulher que a motivasse a se mostrar inteira e delicada. 

Viveu os quatro anos seguintes à cirurgia que deu forma aos peitos como trabalhadora do sexo, a contragosto. Agora estava numa encruzilhada. Recebera da médica a notícia da liberação do SUS para realizar a cirurgia que concretizaria seu processo de transição. O problema novo era ser operada e abrir mão da principal ferramenta de trabalho.
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