Andreia C. Faria nasceu no Porto, em 1984. Publicou em 2008 o seu primeiro livro de poemas, De haver relento (Cosmorama Edições). Seguiram-se Flúor (Textura Edições, 2013) e Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração (Edições Artefacto, 2015) e Tão Bela Como Qualquer Rapaz (Língua Morta, 2017, livro que nesse ano recebeu o prémio para Melhor Livro de Poesia da Sociedade Portuguesa de Autores). Em 2019 reuniu a sua poesia em Alegria Para o Fim do Mundo (Porto Editora).
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Experimenta ouvir o pavão, o seu grito lacerado nos quintais, enquanto o suor velho, almiscarado, a urina e a cerveja morta tenham a cidade em cio. Experimenta ouvir o grito vigorando sobre os risos conjugais, sobre o clamor eucarístico, ali perto, nas praças, o grito insofrido e lento que imaginas propagar-se no pavão enquanto alguém lhe rasga a garganta e a abre impúdica para que vejas do avesso a vibração, a glote em gargarejos anelares, o estertor da tua juventude. Sempre que ouço o pavão, o seu áspero elogio, dou por mim a desejar, talhando as mãos para o sossego, aprender um instrumento em vão, em vez de cigarros um instrumento para me salvar. Tocasse violoncelo e o apelo à gravidade pousar-me-ia o nostálgico contorno de um rapaz no corpo nu, e os que bebem e remexem os braseiros à procura de uma brasa lúcida trar-me-iam lágrimas, a mim que já só guardo alegria para o fim do mundo. Imagino-me morta – experimenta imaginar-te morta, entrega-te ao luto, à luxúria sua crina, à beleza renovada das formas e das cores, e sob o grito indómito sublinha todos os sons. Se fazes versos, matura-os na cidade muda sob um toldo de carvão. Imagina a tua morte como coisa mental, alta e densa entre os homens, próspera, transparente, irradiada como os olhos abertos de um pavão que se arrepia entre os quintais. de Tão Bela Como Qualquer Rapaz, Língua Morta, 2017
SOLSTÍCIO
Por mistério, enfaixaram-me o braço – o esquerdo, inábil, para quem tudo talvez fosse demasiado literal. Que não sabia nada destro nem ensurdecia o coração e sem outra utilidade que arrepiar-se, uma plumagem que por mistério ardia. Por assimilação. Ardia no fim do verão em bolhas de urze, um rasto, leve incitamento toda a pele. A dor correspondia a uma idade geológica. Uma mulher vagamente coincide com a declinação do sol. Na mão cresceu-me um peixe de ossos largos, uma lua de malares acesos, as cordas da voz pervertidas pelo mar, pelo álcool, um homem derramado, um rapaz nas imediações, uma pele amarga de humilhar ou ser amada. de Tão Bela Como Qualquer Rapaz, Língua Morta, 2017
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PREMATURIDADE
Por horror ao vazio se começa a sofrer. Sofrer é o menos perigoso dos hábitos, um modo indúctil de respirar. Na verdade não sofríamos, mas à minha amiga a manhã engolia-a com a goela minudente de uma flor. A mãe pulverizada, comida por um mal de pétalas – a minha amiga perfilava-se ao microscópio para saber porque a tinham feito sofrer? Tinha sido em vão deformar-lhe a morte, feri-la como no seio de uma cadela. Debruçada sobre a lente e alquebrada a minha amiga queria compreender. Compreender, como quem adquire uma arma. *
Que um animal rasteje,
que tenha membros moles e com eles force a vida: desgosta-nos. Quando éramos crianças ouvíamos falar do cão paraplégico e instintivamente odiámos o vizinho. Não apenas o vizinho, mas todos os homens, o grito contínuo da mulher, o chiar dos comboios no trilho, tudo o que fosse transcender o homem nos pareceu forjado ao cão. Que o cão nem depois reconhecesse o silvo entretido dos tiros, que obedecesse às ancas surdas que ninguém lhe amparava: revoltava-nos. de Tão Bela Como Qualquer Rapaz, Língua Morta, 2017
Estou entre a idade de Cristo
e a idade com que Simone Weil morreu. Tendo, como eles, a ampliar fenómenos, os mitos ou o próprio mar encabeçado por um touro, a minha roupa ao fim de um dia de uso arrastando a areia de um qualquer abismo. Mas se resisto às tentações é porque não as sinto. Não as conto entre os tentáculos do dia, a registadora máquina, a trituradora de papel. Seriam anestésico de prazos ou da dor ciática – logo eu que acredito em anjos, suas asas de veludo esconjurado pelo vinho, logo eu que não separo o coração da violência couraçada de um tambor, não sinto. O pecado, o fogo astral, a aliança entre vizinhos – nada disto em mim figura, nenhum gatilho primordial. Gostaria de ingressar nesse negro domínio, o entreunhas, a carne grega, romana ou raiana dos homens, o lugarejo, o sofisma que colora à nascença e destrói o amor. Quase-trinta-e-quatro, corpo-luva em ecléctico quarto, e não sinto. A baia espúria da fé tanto não cobre as frias veias da razão como aparta a visão do esterco, o sono fixo de cavalos, operários ou amantes. de Alegria para o fim do mundo, Porto Editora, 2019
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