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VOLUME 2


ANA LUÍSA AMARAL
Ana Luísa Amaral ensinou na Faculdade de Letras do Porto e tem um doutoramento sobre Emily Dickinson. É autora de mais de duas dezenas de livros de poesia e livros infantis e traduziu diversos autores para a nossa língua, como John Updike ou Emily Dickinson. A sua obra encontra-se traduzida e publicada em vários países, tendo obtido diversos prémios, de que destacamos o Prémio Literário Correntes d’Escritas, o Premio Letterario Poesia Giuseppe Acerbi ou o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.
PAISAGEM COM DOIS CAVALOS
 
Estão lado a lado,
naquela praça em frente da igreja,
nesse calor de quando o mundo oscila
na linha de horizonte,
e o rio quase defronte:
uma miragem
 
Estão lado a lado,
sujos de pó, as cabeças tombadas para a frente,
unidos pelo jugo desigual, a carroça apoiada no muro
mas pronta a ser unida aos corpos deles
 
Estarão feitos assim: velhos amigos,
os corpos encostados mesmo neste calor,
pela aliança muda?
 
Arreios, cabeçadas, todos os instrumentos
do que parece ser mansa tortura
mais o freio, ou bridão,
parecido com aquele colocado na boca das mulheres
que desobedeciam,
 
e era isso há muito tempo,
pelo menos quatro séculos,
ou semelhante ao que se usava
nos escravos, cobrindo-lhes a boca
para que não se envenenassem,
porque se recusavam a viver
escravos
e era isso quase agora, no século passado
 
Mas eles não criam caos nem desacato,
não se revoltam nem tentam o veneno
se o freio agudo lhes fere, pungente,
gengiva, língua, osso
 
Só se encostam quietos, um ao outro,
cabeças derrubadas para a frente,
à espera do chicote
que chegará depois com a carroça, pronta
para a entrega das coisas
humanas, o comércio
 
E é esta a mais perfeita
das colonizações


GENEALOGIAS, IMPRESSÕES E VOOS 

Era de Angola e negra a minha trisavó,
encontrei outro dia o seu nome no verso
não de poema disperso por gaveta,
mas de papel impressionado
a luz e a cristais de prata
 
Foi o seu filho quem lhe escreveu
o nome na fotografia, em gesto de memória.
Lembro-me dele ainda, vagamente,
eu muito menina e ele quase cego,
tocava violoncelo, esse meu bisavô,
falava devagar e num ritmo
incerto e delicado
 
Estão desbotados ambos por idades,
fotografia e a minha trisavó:
o seu cabelo branco em caracóis
(ínfimos olhos de ave tropical),
uma pele muito lisa que lhe invejo, eu
que lhe herdei o nome, mas não a macieza
e cor de pele
 
Podia a minha filha revelar
pigmentos transmitidos
por essa mulher doce,
como dizia ainda a minha avó,
mas os olhos azuis da minha filha
vieram-lhe de novas impressões
 
O pigmento lançado pelo tempo
de ADN comum
chegou à minha filha
em camada invisível: num figmento de pele
imperceptível, uma herança de voz:
música de korá mais do que violoncelo
em ritmo europeu
 
Não se extinguem de facto os vulcões,
antes hão-de abrigar, em comoção de luz,
reimpressões de nós
tingidas pela música de eternos filamentos:
pássaros que algum dia, a cópia nunca igual,
mas de tal gloriosa imperfeição
que o voo lhes é asa –

 

A QUÍMICA DO CÉREBRO
 
A química do cérebro é cruel
ao desdobrar-se em espaços de pensar
microscópicas teias de sentir
 
E devia ser só robótico painel,
capaz de funcionar logicamente
reagir à tristeza emitindo sinais,
 
sedosos bips de intensidade igual
A química do cérebro é cruel
ao misturar as certezas pensadas
 
a notas de ternura musicais.
Devia ser capaz de ignorar a dor
bloquear a angústia em cantos sem lembrar,
 
amarrar o amor a postes de neurónios
e deixá-lo morrer, esquecido e só
E depois exultar com a vitória:
 
o calcanhar bem firme na serpente,
a técnica em ardente e claro ceptro



INTERTEXTUALIDADES 

Microscópica quase,
uma migalha entre as folhas de um livro
que ando a ler.
 
Emprestaram-me o livro,
mas a migalha não.
No mistério mais essencial,
ela surgiu-me recatadamente
a meio de dois parágrafos solenes.
Embaraçou-me o pensamento,
quebrou-me o fio (já ténue) da leitura.
Sedutora, intrigante.
 
Fez-me pensar nos níveis que há de ler:
o assunto do livro
e a migalha-assunto do leitor.
 
(era pão a matéria consumida no meio
de dois parágrafos e os olhos
consumidos: virar a folha, duas linhas lidas
a intriga do tempo quando foi
e levantou-se a preparar o pão
voltando a outras linhas)
 
Fiquei com a migalha,
desconhecida oferta do leitor,
mas por jogo ou consumo
deixei-lhe uma migalha minha,
não marca de água, mas de pão também:
um tema posterior a decifrar mais tarde
em posterior leitura
alheia


 O EXCESSO MAIS PERFEITO
                                        
Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.
 
Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.
 
Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.
 
Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.
 
Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.
 
Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada –
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